5 de março de 2011

SOM DE SINO


Nei Duclós

Um ruído noturno insistente e de origem desconhecida vibra por toda parte. No quarto, na sala, no escritório, ele toca metal ressonante, seguidamente, depois some por alguns momentos. De dia, não se manifesta. À noite, quando estamos ainda despertos e fazendo alguma algazarra , também não se ouve. Mas basta um súbito silêncio, na noite alta, para reaparecer, sem que possamos atinar de onde vem.

Já ultrapassei minha fase mística. Não que não acredite em nada, mas entendi como funciona a armadilha da curiosidade sobre acontecimentos misteriosos: você se envolve, acredita e depois passa, esquece. Fica o dito pelo não dito. Essas percepções parecem fantasmas se forem relacionadas com conceitos, idéias e hábitos, firmes, que adquirimos na chamada vida real. A toda hora vejo notícias sobre a possibilidade de viajar no tempo, do teletransporte, do infinito número de universos, mas já me acostumei ao que tenho ao redor e isso acaba se impondo.

No fundo, acabo duvidando que espíritos possam existir de fato, a não ser como evidência cultural, já que estão presentes em todo o mundo e em todas as épocas. Não há civilização que despreze a existência do mundo dos mortos. Mas as contas a pagar, os projetos travados, as inundações e o mormaço, as manifestações de massa e a história verdadeira do início da República acabam me tomando toda a atenção e não tenho energia ou paciência para ficar cuidando de coisas do além.

Mas confesso que o som surdo de sino de toda noite me invoca. Seria um chamado? Estaria sendo produzido em algum recanto inacessível da matéria escura? Seria para me lembrar das badaladas de igrejas ou do colégio, quando éramos convocados para a aula ou a missa? Será o anúncio espiritual do carnaval por chegar? Bong, bong, bong. Reviro armários, gavetas, esquadrinho cantos, olho sótão, vou mil vezes ao quintal, ponho o ouvido na parede e nada. Fico então imaginando coisas.

Seria eu mesmo avisando que uma parte de mim está presa num corredor de sombras? Seria um náufrago no mar ignoto que, como último recurso, bate um pedaço de cobre que achou na praia deserta para onde foi empurrado e que o acompanha nessa viagem desesperada em busca de salvação? Ou seria apenas um vazamento, ou até mesmo implicância dos vizinhos, tão afeitos à vocação de faze barulho por nada?

Não consegui desvendar o mistério e deixo para lá. Tem tanta coisa que não conseguimos entender. Por que colocam meia dúzia de homens e mulheres cheios de saúde a deitar-se em frente às câmaras se roçando ou falando besteira, ou pior, se condenando uns aos outros ao paredão? Por que implicaram com o vestibular? Por que antigos corruptos voltam lampeiros à cena do crime como se nada tivesse acontecido?

Bong, bong, bong. Talvez seja um anúncio do juízo final, cada vez mais próximo e evidente. Ou então é imaginação minha, com a mente exausta de tantas perguntas e que se entrega a algo indecifrável, talvez para ficar atento ao que possa existir embaixo do piso, na casa ao lado ou lá no último céu, onde anjos nos aguardam, com agogôs e tamborins, preparados para sairmos num bloco de sujo.


RETORNO - 1.Crônica publicada na edição 329 do jornal Momento de Uruguaiana. 1. Imagem desta edição: escultura de Jason DeCaires Taylor. Tirei daqui.

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