31 de maio de 2011

BALANÇO


Nei Duclós


Rabisco amassado em bolso arisco
é semente de poema.
Ele procura terreno baldio
com vestígios de antigo jardim.
Para deixar de rolar

Saldo do dia: alguns tormentos,
parágrafos árduos, dois poemas
e uma vontade de mudança.
Vida em balanço: o riso olha o rosto
na lágrima

Venha, disse o sonho.
Mude de pele por alguns instantes
e entre nessa cidade absurda,
que só existe em gravuras.
Pule o muro da Lua cheia

A fé é a única ponte
quando o chão falta
e a razão tapa os olhos
Sofrimento. Jogo da memória
com a dor que sempre vence


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

30 de maio de 2011

DESMAIO


Nei Duclós


recebo o sol de leste
na véspera de junho
desmaia a mão do Mestre
na luz da manhã pura

o corpo se reverte
em traços de pintura
pincel na flor do verbo
saindo da moldura

desperto sob a sebe
caiada em trigo e uva
retiro-me em cardumes

escolho a moradia
no rumo do poente
em mim se forma o dia



RETORNO - Imagem desta edição: obra de Van Gogh.

NINGUÉM, O MAR


Nei Duclós

Ninguém domina o mar
submarino nuclear
arpão de baleeira

Ninguém confina o mar
canais de panamá
praia cinco estrelas

Ninguém convida o mar
drink no convés
bodas de sereia

Ninguém espanta o mar
tropas de coral
placas de fronteira

Ninguém engana o mar
ventos de amarrar
escamas sobre areia

Ninguém condena o mar
ilhas industriais
espuma de corveta

Ninguém entende o mar
troco de naufrágio
língua de bandeira

Ninguém esquece o mar
arquivo de sonhar
cruzeiro de poema



RETORNO - Imagem desta edição: o navio na areia, impressionante visão do Canal de Suez no filme Lawrence da Arabia, de David Lean.

29 de maio de 2011

A VIAJANTE OBSCURA


Nei Duclós

A poesia é a viajante obscura,
que chega no meio da tormenta,
deposita os sapatos no portal,
entra de mala úmida e pergunta:
quem é você?

Quando nos visitam, olhamos
para os sapatos, as dobras, as mechas,
a cor de uma pele de castigo.
E baixamos os olhos, sorrindo.
É você, digo

Liguei a luz de cabeceira,
onde jazia um livro relido.
Olhei para o teto, com verniz recente.
De repente, a janela abriu-se, bruta.
Era o Tempo

Estive num espaço remoto, inacessível.
Enviei pombos com ramo no bico
e recados nas plumas.
Fiz sinais de fumaça.
Só recebi telegramas

Nada fica de nós,
criaturas sem brilho,
opacos verdugos do tempo insubmisso.
Só o rastro na lava, o aceno na pedra,
o lenço no bolso de linho

Nada fica de nós
a não ser o encontro fortuito,
o longo convívio, o trabalho perdido,
o olhar sobre o muro.
E uma carta, curta, se despedindo

Nada fica de nós
a não ser a palavra suspensa,
o sopro no vidro, os domingos antigos,
o sol sobre a areia.
E o amor, gasto de tanto uso

Nada fica de nós
a não ser esses óculos sobre a mesa,
os livros dispostos na estante,
a marca no travesseiro, as roupas dobradas.
E a saudade

Por que essas lembranças, coração escasso?
O Tempo não tem culpa.
É você, que resolveu sonhar
comigo ao lado.
Você, tango, você, fado

Foi a última vez que a vi.
Estava de vestido cinza, cinto azul, batom rubro.
Riu quando se despediu.
E subiu no ônibus,
rumo à eternidade

É cedo ainda, me disse o anjo,
e foi embora.
Fiquei de rédea na mão,
cabresto inútil de um cavalo chamado Destino.
Soltei-o no pasto e aguardo



RETORNO - Imagem desta edição: obra de Magritte.

28 de maio de 2011

PROTAGONISMO SABÁTICO


Não se assuste com o título. São palavras da moda. Servem para as buscas: quem quiser saber sobre elas vai cair aqui nesta armadilha, neste mundéu de palavras. Porque a idéia é apenas implicar com o uso recorrente de algumas verbalizações, que se tornam consagradas de uma hora para outra. É um fenômeno “viral” (palavra que também é moda): de repente, todos começam a falar do mesmo jeito sobre as mesmas coisas. É uma forma de mascarar os fatos. O sujeito fica desempregado depois de um tempo ou então tem um problema grave e se retira e diz que vai entrar em período sabático. Ou seja, abdica um pouco do protagonismo. Arre.

Dei uma olhada hoje num texto sobre João Gilberto e a bossa nova. É a mesma coisa sempre, escrita pelos mesmos ou seus clones. Que a bossa nova mudou tudo, que João virou Cult no final dos anos 50 e por aí vai. Quem não sabe isso? E se não sabe, basta botar no Google. O que deve fazer um pensador militante quando há algum evento, como por exemplo os trocentos anos de “Elvis não morreu”? Falar da revolução dos costumes? Deu para bola. É preciso criar outras abordagens. De preferência, falar sobre outras coisas, e não sempre voltar ao cânone. Será preciso que todos os sobreviventes das décadas de 50 e 60 morram para acabar essa onda do sonho acabou o da bossa que revolucionou a música?

Ah, mas as pessoas não sabem. Claro que sabem. O desconhecimento hoje não faz nenhum sentido. Só a Wikipédia em inglês (e se desconhece a língua põe no tradutor automático que pesca alguma coisa) tem de tudo. Esses dias fiz uma rápida pesquisa sobre trens. A partir de um evento, a primeira viagem comercial, fui cavando no tempo por meio de links afins e caí em quatro inventores de nacionalidades diversas , que somaram suas sacadas até termos a estrada de ferro completa, que foi concebida originalmente para transportar carvão e por isso o combustível usado é exatamente...o carvão. Sempre achei que era para transportar gente, mas isso foi efeito colateral .

O transporte de carga é a vocação original do trem, mas o troço evoluiu e se transformou no transporte do futuro. Menos no Brasil, onde o imaginário estacionou na Maria Fumaça. Preferimos nos entupir de automóveis (e aí estão chegando as carroças chinesas), poluir tudo com fumaça do que ter trem elétrico correndo de um lado para outro e transportando milhões sem congestionamento. É que o trem perdeu entre nós o protagonismo e entrou num irreversível período sabático. Só pode ser.

Fico impressionado com nossa incapacidade de fechar uma idéia, de ultimar um projeto, ficando apenas nas bases, no início, como se nos recusássemos o protagonismo e optássemos por marcar passo no limbo. Não sei se a culpa é da cultura brasileira que está em nós ou apenas uma série de coincidências. Hoje por exemplo, se resgata a memória do inventor do rádio e outros grandes insights. Padre Landell de Moura, que obteve patente dos seus trabalhos até nos EUA, mas não levou a fama nem o dinheiro. Ou seja, não teve protagonismo (que palavra feia!). Seu laboratório foi destruído por fanáticos pois não entendiam como manipulava emanações de energia para obter resultados. Um deles foi conseguido pelo italiano Marconi, que registrou o invento e em 1930 NÃO acendeu as luzes do Cristo Redentor no Rio por meio das ondas, pois o mecanismo falhou e optaram por uma solução caseira para o evento dar certo.Marconi levou a fama por ter se apropriado do que Moura tinha descoberto décadas antes, mas não conseguiu realizar, de fato, seu grande feito pioneiro no Brasil! Ficou o protagonismo.

Mas tem mais. Santos Dumont inventa o mais pesado que o ar e não registra. O padre cearense inventa a solução definitiva para a máquina de escrever e envia o protótipo e os desenhos, tudo para uma indústria de armas americana, a Remington. Parece que o Bina, invenção de brasileiro, foi abocanhado por espertalhões (não segui o assunto, tem que botar no Google). E por aí vai. Por que somos assim? Preguiça? Gosto de criar mas não de cuidar dos finalmentes? Sei lá. Vivemos encostados e notamos que chineses e gringos compram adoidado nossas terras pois querem fazer como no Texas, em que compraram tudo dos mexicanos e depois instalaram lá um estado. Debocham dos que se insurgem contra a entrega do território nacional, como se fôssemos eternos. Somos precários, escassos e podemos dançar bonito.

No concerto internacional das nações, ficamos com a lambada. Ou a lambança.


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

27 de maio de 2011

REPORTAGEM


Nei Duclós

Todo segundo é memória
aceno longe da rota
Viver é ficar guardado
no tempo que joga fora

Passa presente, que é hora
de despachar a bagagem
Trem que se entredevora
na roda do serpentário

Nenhuma semente brota
na fuga feita de sobras
Quem não escapa reporta

O encontro não faz a obra
o abraço não se consuma
só o futuro nos cobra


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

25 de maio de 2011

ORIGEM


Nei Duclós

E se a claridade assusta
e o corpo, transido, se recolhe
é o vício da escuridão
que nos conquista

Assim como as palavras
terra à vista
a partir do espólio
de uma esfinge
(a cultura sepultada
no discurso)

E se o coração é exílio
e sua ausência boceja
na política
é a vertigem do sono
ainda viva
(apesar do vulcão
em cada esquina)

É ainda a sesta e a sesmaria
a mentira dos longos matutinos

E se a escuridão assoma
e o olho, fechado, fantasia
é o vício tropical da nossa origem
o túmulo do Brasil
forçando a tampa



RETORNO - Imagem desta edição: Glauce Rocha, Pereio, Jardel Filho em Terra em Transe, de Glauber Rocha

A NOITE AVANÇA


Nei Duclós

Grandes ventos mudam o tempo
e o meu coração, pássaro noturno
voa sobre São Paulo e o mundo

As nuvens avisam: estar atento
ao navio e seu rumo

Nova direção, espanto
levanto o pó dos meus cabelos

A noite avança, evaporando
caldeirões de estrelas

Fantasma é meu sonho, que assoma
na escuridão


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

21 de maio de 2011

INTERNET E JORNALISMO: FELIZES PARA SEMPRE?


Este texto é um comentário extendido ao post do meu amigo Cesar Valente (*).


O jornalismo “tradicional” faz parte da internet. Sua versão impressa é só uma parte dele e também vai para a rede, de uma forma ou outra, de maneira oficial ou não. Suas reportagens e informações estão no ar, como todo o resto. No universo digital, está também se diluindo a fronteira entre mídia social e o seu entorno. Tudo é mídia social, não apenas facebook, twitter ou Orkut. Comentar um blog ou site, criar um espaço de próprio de informação e opinião e divulgar links acaba gerando comunidades de interlocução.

Mesmo que haja grande intensidade de participação geral, já que a internet é a mídia das fontes (todos são mídia), ainda existe a divisão emissor/receptor, que não é mesmo um conceito obsoleto. Um post vem de um emissor, um comentário de um receptor. Os dois não tem o mesmo peso num espaço dado. Há muita confusão teórica. Blog de grande mídia por exemplo é coluna. Usa a ferramenta blog mas assim não deveria ser chamado. Um blog é o ambiente, não o que se coloca nele. No meu blog Outubro existe o Diário da Fonte, um jornal autoral, completo, com tudo a que tem direito, de artigo a reportagem, de opinião a argumentação, de fato a especulação, de notícia a memória, de cultura a política, de poesia a esporte.

Confunde-se opinião com argumentação. O truque é reduzir, num debate, a argumentação alheia a mera opinião e assim poder “respeitá-la”, que é maneira comum de ser indiferente. O artigo com argumentos e opinião exige formação pesada, que é a informação intensificada, concentrada. Se uma pessoa fraca das idéias, sem base nem criatividade, emitir opinião, não vou ler nem seguir. Vou atrás de quem tem algo a dizer, mesmo que não diga nada e exiba o principal, que é o domínio da linguagem. É precisos ser craque para encher espaço só sugerindo uma atração,como faz Chaplin no seu memorável circo de pulgas em Luzes da Cidade.

Uma seção de editoriais faz parte do jornalismo e muitas vezes é sua principal atração. Um cronista pode dizer muito mais do que um repórter, depende de quem (e não me refiro a apenas aos que tem capital simbólico, basta a competência). “Apurar” não justifica a credibilidade.

O problema é que ainda existe o status da mídia bem posta e seus articulistas e jornalistas notórios que não interagem de verdade com o público. Fazem o papel de popstar distribuindo docinhos na boca dos espectadores, um elogiozinho aqui, um agradecimento acolá, uma citaçãozinha sem importância. Acabam mantendo seu lugar cativo na torre de marfim. Para mudar essa situação tem que descer do trono, fazer rodízio, trocar de papel de emissor para receptor e vice-versa.Fica difícil quando temos correspondentes em Washington mais imperiais que o Império e que só faltam enviar tropas para o Paquistão. Ou outros que se adonam na palavra democracia e distribuem cascudos para quem não se comportar democraticamente direito. Ou especialistas em economia que lucram na especulação financeira.

Se esses papéis hegemônicos se mantêm, não adianta também os tradicionais abrirem mão de sua postura se existem candidatos emergentes prontos para assumir o papel de novos especialistas, que pontificam sobre as novidades dentro do modelo tradicional. É uma sinuca de bico. Não há soluções à vista, pois aprendemos fazendo. Estou fora das redações tradicionais, mas o mundo virou uma grande redação. Todo mundo pauta, faz editorial, artigo, reportagem etc. Apurar só usando a internet exige alta especialização. Costumo ter colaboradores que me ajudam e trazem à tona o que está oculto no grande caos da rede. É muito mais do que tínhamos quando havia apenas de telefone, arquivos ou TV.

RETORNO - 1.(*) Por que estou falando isso? Porque sou assíduo do blog de Cesar Valente, De Olho na Capital e escutei lá o excelente debate "Redes Sociais transformam o jornalismo?”, que foi ao ar na quinta-feira, dia 19 no programa Jornalismo em Debate, transmitido ao vivo pela Rádio Ponto UFSC, nos estúdios do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Além de César, participaram também Alexandre Gonçalves (Coluna Extra e RockSC), Alexandra Zanella (DC Online) e Rogério Christofoletti (UFSC e Monitorando). Por telefone,participou o jornalista Douglas Dantas, diretor de Mobilização em Assessoria da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), que estava em Vitória, ES.O audio do debate está na integra no DONC.

2.Imagem desta edição: final de Tempos Modernos, de Chaplin.

20 de maio de 2011

DEUS E O ACASO


Tenho torrado no twitter a idéia bizarra de que a existência de Deus é uma invenção humana, como se a humanidade datada fosse capaz de gerar a idéia do infinito, que é marca da divindade na nossa alma, segundo Descartes, o mais racional dos filósofos. A abordagem fundamentalista laica é política, uma arena onde ela se sente à vontade pois a aborta o foco da transcendência e abre a guarda para inúmeras ações. Serve para justificar a sequência de barbaridades que estão sendo cometidas em nome da inexistência divina. No fundo, não é Deus que está em questão, mas o poder.

Como tenho muitos amigos ateus ou agnósticos, que nada tem a ver com esse rolo, abri também espaço para a diversidade do assunto, já que fechar questão nos levou a muitos morticínios. Vamos às frases:

“Xeque-mate!”, disse Deus. “Vamos começar outra”, disse o Acaso.

Deus não joga dados porque sabe o resultado

Acaso é o deus laico

Vou fazer a água evaporar em forma de nuvem, que depois vai cair em forma de água. Criei o moto contínuo. Ou não me chamo Acaso

O único up-grade que deu certo foi o da costela. Mas, também, aí não teve graça. Era Deus em pessoa na programação

Já sei! disse o Acaso. Vou colocar trilhões de corpos celestes boiando misteriosamente, alguns com vida,outros com luz própria.Nem acredito!

Registro correntes elétricas neurobiológicas de intensa atividade por ti, disse o ateu. Já eu não sinto porra nenhuma, respondeu a muher

Vou coalhar o céu de estrelas no verão e de repente fazer subir a lua cheia.Chamarão isso de equinócio bilateral, mas o que importa é a obra

Na boa. Coloco uma coisa gelatinosa no buraco de um esqueleto e ele tem a capacidade de enxergar.Depois escuto que as amebas começaram tudo

É simples. Coloco uns corpos boiando no espaço, cheios de vida dentro, uma mais complexa do que a outra, e sopro a idéia de que não existo

E agora, as sinapses, disse o deus Acaso para si mesmo

O cara mais inoportuno que existe é o Tempo. Mas, pior sem ele

Graças aos babacas pseudoreligiosos (os profissionais de Jesus) e aos fundamentalistas, o assunto Deus virou piada

O Acaso não explica nada. É apenas um álibi para negar a evidência de Deus

Laico é masculino de Laika

No Brasil, ateu usa expressão "de alma lavada". Devia usar "de sistema neurobiológico evolutivo lavado"

Deus não bate pênalti, nem defende. Pênalti é uma negociação entre a bola e o pé

Tudo fazem para sentirmos vergonha da Igreja. Pois eu sinto exatamente o contrário. A fé em Deus e na sua Igreja é a única aliada do povo

Só a Igreja Católica tem que ser ecumênica. As outras crenças, como o ateismo ou agnosticismo, não abrem mão de seu cânone

A laicidade obsessiva é um fundamentalismo tão opressivo quanto os fundamentalismos religiosos. Nada existe fora dos seus muros

O ateismo é natural, assim como os caramujos. Deus é um pouco mais acima.

Deus escreve certo até 140 caracteres. Mais do que isso é fundamentalismo.

Deus não está confinado nas tuas orações. Existe também fora delas, como a noite infinita ao redor do fogo

Hoje é Deus. Amanhã, só Ele sabe.

Lembre da tua infância, quando Deus sentava no portal de casa contigo.

Os estádios não tem deuses. Estádio não é igreja. As bibliotecas não são lúdicas. Biblioteca não é play-ground.

Meu vizinho disse que o ficus que grudou na parede da minha casa atraía elétrons provocando ventos.Falei: acredito em Deus, mas não no átomo

Deus toma notas, não para lembrar, mas para mostrar como prova

Deus recorta o céu azul profundo com o olhar, mas a metereologia fala em "massa de ar seco".Só a poesia capta o esplendor de março


POR ACASO, A POESIA


Não perca tempo com esses assuntos, disse Jack o Marujo. Prefira as pedras, que são eternas, ou as garças. Abrace a indiferença que liberta

Longevidade é quando prescreve o crime de ter nascido

Fantasmas se ofendem ao ser ignorados e fogem para o Tempo Ido, onde tudo obedece aos seus desígnios. Até você, que não os vê, fica submisso

Embarcamos com a mala gasta cheio de roupas porque é inverno, e aguardamos o apito do trem. É quando o sonho bate no vidro, desesperado

Depois de passar todos os comboios de palavras inúteis, vemos que na estação,o tempo todo,ao nosso lado, brotava o primeiro som de um poema

Beijo qualquer com gosto de Lua, dado ao acaso num lábio de rua, volte ao cordão que nos viu amarrados, traga a manhã ao som do dobrado


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

19 de maio de 2011

A LEGALIDADE DO ERRO


Nei Duclós (*)

Língua chamada culta é o pacto social, o que define as relações de convívio numa nação. Pode haver mais de um idioma oficial no mesmo país, mas o que importa é o acordo comum que faz de cada cidadão uma fala regulada pela linguagem definida pelo cânone. Existem as gírias, as mudanças, os arcaísmos, os códigos, os regionalismos, mas tudo gira em torno do parâmetro, se refere a ele de uma maneira ou outra.

Se você determinar, primeiro como postura teórica, depois como lei, que cada um escreve como quer, então o pacto social irá se romper, abrindo a guarda para o caos. Não é apenas a dificuldade de comunicação que se instaura no atacado e no varejo, mas a interpretação das regras a partir do que é escrito. Se o que estiver dito estimula o erro, o deslocamento do modelo, então tudo pode. Se você não compartilha do mesmo entendimento com as pessoas dentro da mesma fronteira, então o conflito se generaliza, ainda mais quando há sotaques tão diversos e sinais explícitos de escorregões gramaticais que denunciam o status, a origem de quem diz.

É o que vemos hoje no Brasil: o conflito generalizado devido ao ataque sistemático sofrido pela língua culta em todos os níveis e nichos. Começa pelo sucateamento do ensino, denunciado por recentes dados divulgados pelo IBGE, onde o analfabetismo é hegemônico. E passa também pela reforma ortográfica, que muda substancialmente o acordo, colocando o país a reboque de Portugal, e vice-versa (eles também não gostam dessa promiscuidade; nossa língua é o português do Brasil, não o de Portugal; são diferentes, não muito, mas são). Quando eliminam hífens, acentos diferenciais, trema, se dá um passo importante para eliminar a crase, que é uma dificuldade necessária da língua culta, pois se facilitarmos tudo iremos cair na vala comum do patuá, do “nóis vai” e “nóis semo” (tirando assim, pela oficialização do erro, a graça do escorregão gramatical).

A crase mostra que a língua tem o poder de criar soluções para definir limites e esclarecer, mesmo que para isso seja preciso palmilhar o caminho árduo do estudo. Mas como só a ignorância é espontânea, o conhecimento exige suor e determinação. Quem se esforça para aprender a língua culta entende que tudo na vida se consegue dessa forma. Nada brota ou cai do céu. Mesmo a vocação, que é a graça dos dons herdados do berço, precisa de estimulo, trabalho, foco, metas.

Não se deve pensar que Cartola escreveu seus maravilhosos versos só porque tinha o dom. Ele fez o primário antigo e tinha lido Bilac e Castro Alves. Ou que tivemos a afinação magnífica do Trio Irakitan por motivos desconhecidos e não porque Villa-Lobos implantou o canto orfeônico como matéria obrigatória em todas as escolas públicas do país. Temos uma grande literatura porque todos os escritores foram educados na língua culta, com destaque para Guimarães Rosa, que enriqueceu a linguagem baseado na cultura colonial sobrevivente no sertão.

Não teremos país se insistirmos em detonar nosso patrimônio comum, a língua portuguesa falada e escrita no Brasil.


RETORNO - 1.(*) Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Explosion, obra de Salvador Dali.

17 de maio de 2011

FLAGRA



Nei Duclós


Faltou luz
na madrugada
Só ficou acesa
a lua cheia

Fadas fazem luau
em segredo na areia
Ninguém escuta
o barulho da balada

A convite da sereia
o marinheiro mergulha
em confiança
para o nada

A lâmpada neon
no resto da plumagem
A lâmina de prata
cega no convés

Alarido de mulher
atiça a guerra
O sal da água
arrasta os pés

De repente o sol
devassa a praia
flagra o amor
atrás da pedra



RETORNO - Imagem desta edição: Super Lua sendo admirada na Torre de St. Michael em Glastonbury, Somerset. Tirei daqui.

HIPERTEXTO


Nei Duclós



Só lendo que te vejo
palavra cega no ermo.


Só vendo que te leio
imagem surda, concerto.


Só próximo te aprendo
vogal perfeita, hipertexto



RETORNO - Imagem desta edição: mobile no estilo de Alexander Calder

RESGATE



Nei Duclós


Aos vinte anos a vida termina
ressuscitarei um dia
quando voltar esta nuvem
que passou por mim
e foi perdida

Meu cofre está vazio
como um recém nascido
mas posso ver nele
tudo o que eu não via
inclusive meus abrigos
que despi em pleno frio

Frágil demais
enlouqueço devagar
para não quebrar a espinha

Eu sei de um cais, amiga
onde ninguém desconfia
que ali chegará um navio
que todos viram partir

Eu sei de um cais
semeado de minas
onde o futuro pisará
explodindo
a mudez do exílio


RETORNO - 1. Poema publicado com algumas modificações no livro No Mar, Veremos. Prefiro esta versão, mais fiel à original. O poema vem pronto, mas invocamos com detalhes, que mudam a música dos versos. Então, devemos recuperá-lo em sua identidade completa. 2. Imagem desta edição: uma fragata imperial fundeada em frente ao Cais da Alfandega de Porto Alegre em 1865. Tirei daqui.

16 de maio de 2011

“O SUPOSTO”, UM JORNAL ISENTO


Um bom nome para jornal seria O Suposto. Teria apenas verbos no condicional. Sem reportagens, apenas Boletins de Ocorrências. Sem repórteres, apenas escrivães. “Segundo” e “de acordo” seriam obrigatórios em todas as frases. As matérias teriam de confessar alguma incompetência, como a falta de retorno da fonte principal. O noticiário esportivo seria na coluna "Taí, portanto" , que começaria sempre com a expressão “como tínhamos previsto”. A seção política seria Saia Justa e o noticiário sobre calamidades, Força Tarefa. O caderno cultural cobriria apenas moda, design, publicidade e mega-shows. Livros seriam um rodapé de auto-ajuda, com lista dos mais vendidos previamente acertadas com as editoras.

O importante seria manter sempre a isenção absoluta em relação aos fatos, de preferência que não houvesse nenhum compromisso com eles, a não ser suposições. Sempre que surgir a palavra portuguesa, insere-se a expressão com certeza. Quanto aos títulos, apenas variações de Crônica de Uma Morte Anunciada. Chacina seria apelidada de Um Dia de Fúria. Os articulistas defenderiam as falcatruas existentes e por fazer, desde que abrissem seus textos com alguma impropriedade cult, uma citação falsa, uma tautologia, ou uma obviedade que nega o que confirma.

Nenhum parágrafo teria mais do que duas linhas, sendo que a metade de cada um deles diria exatamente o que disse a metade do parágrafo anterior. Todos os enigmas seriam repassados para o leitor, já que a apuração seria terminantemente proibida. Se por acaso alguma verdade roçar no texto da redação de O Suposto, imediatamente os alarmas soarão e será convocado um Gestor de Passaralhos para manter o pessoal na linha. Seria permitido chupar tudo da internet, mas sem dar o crédito. E convocar leitores para trabalhar como jornalista de graça. Não admitir jornalistas, só vendedores.

O Suposto seria um jornal isento de jornalismo, que é uma atividade punida por lei. Os colaboradores fixos seriam recrutados na indústria financeira e entre ex-celebridades. Os editoriais teriam patrocínio de algum refrigerante. As manchetes teriam uma tabela de custo. As cartas dos leitores seriam substituídas por releases de no máximo 10 linhas. Fotos, só da Divulgação. Furos, só os permitidos pelo governo. Denúncias, apenas no caso de confirmação por escrita do denunciado, registrada em cartório, em três vias datilografadas em espaço dois e reproduzidas em papel carbono.

O Suposto teria uma versão impressa limitada, mas com tiragem irreal para superfaturar nos anúncios. Tudo seria encalhe. As visitas on line seriam cooptadas por meio de ferramentas digitais automáticas. O Suposto também inventaria ser centenário. Não conta que antes de chamava Correio de Notícias, depois Folha da Madrugada e mais tarde, na crise braba, Opróbrios e Falcatruas. Tudo vira um O Suposto só, desde o início do século passado. Eventos seriam planejados para a grande confraternização. Seriam encomendados jornalistas vetustos para mentir sobre saudades dos bons tempos das redações românticas esfumaçadas e sem micro. Depois sairia o caderno especial sobre o ágape, mas com patrocínio ambiental, com anúncios sobre a sobrevivência dos Ferozes Indios Xerox.

O texto diria o seguinte: "O Suposto, jornal que teria sido feito desde 1911, teria dado grande festa onde supostamente houve convivas".

RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

15 de maio de 2011

O ROLO DAS CAUSAS ACHADAS E PERDIDAS


O defensor de uma causa impregna-se dela e é confundido com o que defende. A causa mesmo fica de lado, pois a identificação a substitui, por ter visibilidade, portanto, poder. Causas obscuras ou pouco conhecidas geram esse processo de deslocamento com mais intensidade. O falecido político Enéas era confundido com a nacionalização do nióbio, por exemplo. Ninguém sabia exatamente o que era esse elemento importante para a indústria e abundante no Brasil e que está em mãos estrangeiras, mas todos conheciam Enéas como defensor dessa causa. No filme London River, o africano que preservava o olmo era visto como o guardião das árvores centenárias que, apesar do seu esforço, foram para o abate. Mas nas causas mais explícitas costuma acontecer a mesma coisa. Fale em paz e todos celebram Ghandi, enquanto o morticínio continua a mil. Marina Silva é um sucesso, mas o desmatamento avança.

“Como quer fulano” é a expressão mais usada quando se fala de um assunto assumido por determinada personalidade. Não importa a origem da luta, o que vale é apontar o sujeito que pegou a bandeira . É a forma de deixar tudo como está. Dá-se um prêmio polpudo e notório para ele e pronto, está liberada a ação que realimenta a causa. O mais perverso é premiar quem se destaca exatamente por motivos opostos ao que defende. Sob o álibi de políticas de Estado em defesa de alguma nobre causa, gente como Henry Kissinger, o carrasco do Chile, ou Obama, que manteve a invasão do Oriente Médio, ganharam o Nobel da Paz. É uma forma extrema de deslocamento: identifica-se alguém, via marketing, com a causa, principalmente se for contra ela e monta-se o circo. Sempre cola. O marketing é a lei.

Há uma aura poética sobre aqueles que abraçam uma causa perdida, quando não envolve mortandade, naturalmente. Os insurgentes da Chechênia matam adoidado, então não existe charme nenhum na sua luta, mesmo que possam ter razão. Mas há causas perdidas que viraram poderosas indústrias, como a defesa das baleias, da floresta ou das tartarugas. Bilhões de dinheiro público são carreados para as entidades e personalidades que fazem disso uma profissão. Pode até funcionar. Deixam de ser perdidas, mas continuam como fonte de muitos recursos. O importante é dizer sempre que existe a ameaça de extinção, mesmo que os projetos salvadores tenham dado certo.

Uma causa leva algum tempo para se consolidar. Algumas pegam rapidamente e logo perdem força, como a busca do Belchior desaparecido. Mas o normal é o mundo escutar um bordão insistente cada vez mais audível e começar a adotá-lo de maneira irreversível, entupindo a percepção com sua reiterada convocação. Qualidade total, por exemplo, fazer certo pela primeira vez. Custou um tempão para chegar no Brasil. Chegou, foi adotada como discurso, mas o desleixo continua, com raras exceções. A legalização da maconha correu mundo antes de se instalar entre nós de maneira inapelável. Ainda existem poucos adeptos assumidos (pelo que se vê nas passeatas, sempre escassas, ao contrário das concentrações religiosas, enormes), mas a tendência é crescer. Quando chegar a vez de liberar, já era. O Brasil sempre chega depois.

Uma das causas perdidas atualmente é a da soberania do Brasil. Por fora, bela viola: todos são em tese a favor. Por dentro pão bolorento: ninguém mais é brasileiro e ninguém se espanta que o Brasil aumente em 240 milhões de dólares por ano a remuneração ao Paraguai pela energia que não usa de Itaipu (no total são US$ 360 milhões) pois há a certeza de que devemos algo ao país que nos invadiu, saqueou e estuprou antes de reagirmos. Ninguém pergunta quanto por cento ficará para quem aprovou essa verba interminável paga pelo dinheiro extorquido por um sistema tributário vampiresco.

Soberania é mesmo uma causa perdida. Por enquanto. A bandeira do Brasil continua lá, tremulando. Patriotismo sem patriotada: eis uma boa causa que merece ser tratada pelo que é, e não deslocada para os aproveitadores de sempre, os autores de campanhas milionárias do país de todos ou do velho ame-o ou deixe-o. Não adianta dizer “o Brasil, como quer fulano”. O Brasil, símbolo de amor eterno, como definiu Osório Duque Estrada, exige dedicação integral. O patrimônio é gigantesco demais para ser jogado numa vala comum.

14 de maio de 2011

PRAIA DA CONQUISTA


Nei Duclós



A forma do mar é teu rosto
e o som da areia teu passo

Há um porto íntimo na memória
que envia navios de sonho

Crianças brincam ao sol
das palavras que pões no colo

Cada noite é uma viagem
e a dor se quebra na volta

Enrolada em nosso corpo
a vida escolhe a vida
faminta, forte

Um filho nascerá da aurora


RETORNO – Poema feito para minha mulher, Ida Duclós, autora da imagem desta edição. Está publicado no livro No Mar, Veremos (Editora Globo, 2001).

A LUTA PELA LINGUAGEM



Nei Duclós

No front do Twitter, reajo contra a destruição da língua, que está sendo implantada pelo governo. Detalhes da mais nova barbaridade do MEC aqui. Por isso coloquei algumas frases que são fruto do amor pela palavra, a paixão pela linguagem, a convivência com a língua culta, com o aprendizado e o ensino inesquecível da infância, mocidade e vida adulta, um sistema educacional que sempre existiu no Brasil e que sofre demolição sistemática atualmente. Vamos às frases:

CRIATURAS E DIVINDADES

Tristes teclados estrangeiros, sem o ce cedilha. Ç é civilização: subversão do bloqueio natural do c, clonagem dos dois esses,excesso,supérfluo

A cedilha é a porta do porão, que leva o travado C a uma aventura pelo vento

A crase foi feita para humilhar.Implica função bizarra de preposição para o a, impregnado de sua irmã gêmea.E não admite companhia masculina

O acento diferencial é o sinal de trânsito no caos das palavras. Afasta quem vem para bater de frente nos significados. Preserva princípios

Quando dois oo saem juntos, é bom colocar boné num deles, para não confundi-los, como em vôo. Mas parece que não gostam disso

Gênesis é ênclise: Faça-se a luz! Lei é mesóclise: Fa-lo-á. Povo é próclise: Me vou

O trema é o passaporte de vogal para o u sequestrado de sua função original, prisioneiro do q. Mas é um passaporte jogado na ilegalidade

O acento grave é um tio esnobe que só vem visitar quando lhe pedem. Raramente interfere e retira-se para que o esqueçam

As vogais são o sopro divino no barro das consoantes

Cada letra é a invocação de uma divindade. Por isso a linguagem é sagrada. No seu território, descalçamos os sapatos e abraçamos o sonho

PALAVRA AO NOSSO LADO


Quando tentam demolir a língua e o ensino, querem arrancar o melhor de nós. Não permitiremos. Tudo é linguagem e é nessa arena que lutamos

Temos nossa porção bolo. Quanto mais batem em que acreditamos, mais crescemos

Ninguém deve tirar o deslumbramento da criança diante da descoberta da linguagem. Crianças e palavras, colocamos no colo

Quando as palavras brotaram nos meus olhos, fruto de letras que germinaram primeiro em sílabas e se agruparam, estava fisgado para sempre

Se pisarem na língua achando que ficarão impunes, terão seu troco, pois afundarão no esquecimento enquanto a palavra continuará sua viagem

A poesia é a arte de celebrar esse coração grudado na língua culta, que arduamente aprendemos. Somos a palavra que fica. E por isso vencerá

Não há tirano que nos afaste da aventura que é navegar com a língua materna, que nos ensinou tudo e nos leva para a eternidade com sabedoria

Linguagem é paixão de toda uma vida. Feliz na infância, impetuosa na mocidade, grave e e soberba na maturidade. Ninguém matará esse amor

A gramática impede que os brutos tenham razão. Quando ela vigora como lei, quem diz "nóis vai" acaba desmoralizado

Você está me matando, disse a vítima. Ora, isso é preconceito seu, disse o criminoso

RETORNO - 1. Entre muitos outros, estiveram juntos me acompanhando nesta viagem as pessoas que se assinam @FilhodaNeida @doryangrai @miaeloin @Rosieny_Tomaz @anagrana_ @RiNeriLima @NesterTweets @LindaHans @CRF_Rafa @taniaaranha @fiodavida @sandrasimi @samiramoratti @Dani_Net 2. Imagem desta edição: tirei daqui

13 de maio de 2011

PERDER


Nei Duclós

Vemos tanta gente cantando vitória na indústria do espetáculo que chegamos a nos perguntar,como Álvaro de Campos, se “não há mais gente no mundo”. São multidões em fúria comemorando campeonatos, com seqüelas conhecidas e repetidas, nações vibrando com a morte alheia, como se a vingança apagasse a mácula, vaidades pincelando atitudes sem importância, entre outras manifestações suspeitas. O convívio pacífico implica aceitar a perda, sob pena de virarmos todos uns cretinos. Todo punho cerrado para o alto atinge alguém, enquanto as mãos postas a todos beneficia.

Perder é o preço que pagamos pela civilização, que por natureza é criada em cima de vitórias pesadas, celebradas em monumentos e datas históricas. Depois da carnificina que é a fundação de cidades e nações, a humanidade se retira para a paz, que é o resultado dos conflitos sob controle. Não se pode continuar querendo vencer a todo pano, sem negociação,como se estivéssemos ainda em formação.No esporte, quando o resultado estiver definido, vencedores e vencidos devem trabalhar mais o bom humor do que a frustração. É para isso que existem jogos e campeonatos: para levar as diferenças a um território onde não haja sangue nem morte. Mas não é isso o que se vê em muitos casos.

Há uma cultura implantada de tirar vantagem sobre a competição na vida profissional e pessoal. Isso é reproduzido em rede, desde o mais alto escalão. Há uma gula em relação ao patrimônio alheio, fruto da má distribuição de renda e do sucateamento dos princípios básicos da vida social. Não ter parece que agora gera um sentimento irreparável de perda, que só o crime poderia reverter. Tanta violência e corrupção talvez venha desse voluntarismo em relação ao que é dos outros. Vemos isso na vida cultural, onde os nichos, as panelas, os aparelhamentos continuam excluindo vastas porções dos talentos, que se perdem no ralo da incompreensão e da falta de oportunidades.

Retirar-se para se concentrar e meditar é uma atitude religiosa que serve para todos os aspectos da vida. Deixar de lado a gana das carreiras feitas a qualquer custo, principalmente da saúde alheia, leva ao perigoso sentimento de exclusão, reforçado pela pompa de quem continua no front. É muito difícil refazer uma vida profissional em novos termos. O mais barato é continuar insistindo no mesmo tipo de função e suas conseqüências. Adiamos assim para os ultimos anos da vida datada o que poderíamos ter feito no início. O resultado é o que se manifesta em aglomerações, que os idosos deblateram sobre as injustiças do mundo, pois reservaram a mocidade para a sobrevivência sob o tacão da exploração pura e simples.

Perder pode ser outra coisa. “Você ganhou” diz o policial para o revolucionário morto na véspera da independência da Argélia no filme, indicado ao Oscar , Hors la Loi (Fora da Lei, 2010), de Rachid Bouchareb. Um revés pode ser indício de vitória. Ou a imposição de uma verdade: a de que somos precários, escassos e precisamos conviver com a perda para não nos entregarmos de vez à barbárie.


RETORNO - 1.Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Cena do filme "Hors la loi".

HIPERTEXTO


Nei Duclós



Só lendo que te vejo
palavra cega no ermo.


Só vendo que te leio
imagem surda, concerto.


Só próximo te aprendo
vogal perfeita, hipertexto



RETORNO - Imagem desta edição: mobile no estilo de Alexander Calder.

11 de maio de 2011

COPY DESK, O ANÔNIMO EDITOR DE TEXTO


Fui copy a vida inteira. Chamava-se redator, uma função que sumiu na imprensa. Chegávamos mais tarde e saíamos por último, junto com o editor. Recebíamos os textos, copidescávamos, fazíamos o fechamento, como títulos, olhos, legendas etc. Hoje repórter faz tudo isso. A terceirização desses encargos liberava a reportagem da chatice de acertar o número exato de toques de um título sem cair no ramerrão muito comum hoje, de usar "diz que" ou verbos esdrúxulos como mirar (mira é curto, aparentemente resolve, mas fica estranho). Um bom copy é obrigatoriamente criativo, além de competente, e o primeiro a ler a matéria, o amigo dos leitores do jornal ou revista.

Os copys eram anônimos para o grande público, só conhecidos e valorizados no meio jornalístico. Chamavam um bom copy de “puta texto”, que extraía maravilhas de uma maçaroca de dados. Grandes copys ficam na História, como o legendário Miltainho, Mylton Severiano da Silva, que fazia dupla com repórteres antológicos como Hamilton Almeida Filho. Outros se revelaram escritores famosos, como o Fernando de Morais ou Humberto Werneck. E muitos ficaram naquele circulo compenetrado dos grandes fechadores, exímios artífices da língua, como Antenor Nascimento ou Genilson César. A relação com os editores costumava ser amigável, pois resolvíamos um monte de pepinos, mas com a reportagem havia tumulto.

“Foi você que mexeu no meu texto?” perguntou a repórter da Ilustrada, da Folha de S. Paulo, furiosa, com o jornal na mão, no meu segundo dia de copy no caderno. Fui, respondi. “Então da próxima vez não assine meu nome, porque eu não escrevi isso”. Ok, tornei a falar. Vou fazer isso. Não vou assinar seu nome e continuar copidescando. O texto da moça era muito ruim e em um mês ela ficou minha amiga. Descobriu que eu trabalhava a favor dela. Fazia questão de assinar tudo. O copy assumia uma espécie de missão cívica, com o mesmo espírito do trabalho solidário.

É preciso gostar de escrever, gostar do que os outros escrevem, admirar a reportagem, não causar problemas ao editor, não guardar ressentimentos, não querer brilhar com o trabalho alheio, nem colocar as patas nele. Um copy é um especialista em extirpar lugares comuns, descobrir furos na estrutura do texto, buscar informação para resolver impasses, entrevistar o repórter, checar as fontes, entregar tudo no prazo e retirar-se todos os dias para sua caverna nas montanhas. Lá no alto, ele medita esperando o sol nascer de novo para iluminar o vale das palavras.

A TV Guia, revista da Abril que durou sete meses em 1977, baseada na TV Guide americana, foi meu momento xis do copy. Trabalhava junto com dois craques: Macedo Miranda, Filho, que citei várias vezes em meus textos de memórias, e Ricardo Vespucci, o Bi, figura maravilhosa que já partiu pra o Outro Lado. Com eles aprendi a técnica do texto redondinho de revista, aquele que tem o desfecho sintonizado com o início e costura parágrafos sem dor, para que a leitura flua como veleiro em tarde tépida de outono. Não se trata de facilitar a vida de ninguém, mas de seduzi-la pela qualidade do trabalho, torná-la prazerosa, aventureira, com revelações. Tínhamos material para isso. Os textos vinham de gente pesada como Caco Barcelos ou Audálio Dantas, que nos entregavam grandes reportagens de uma dez laudas, o que era um despropósito para o formato da revista (do tamanho de uma meia Veja).

A TV Guia pagava muito bem, mas sofreu concorrência acirrada do grupo Manchete (que emplacou algo parecido nos seus veículos e que era dado de brinde). Era sofisticada, pois além da programação completa das TVs tinha belas reportagens. E havia chance de os copys assinarem artigos sobre temas variados, o que fiz algumas vezes. A revista tinha como editor o Woile Guimarães, que mais tarde foi para a Rede Globo. Macedo Miranda viera de lá e para lá voltou. Depois montou uma empresa própria e continua sendo um profissional respeitado e talentoso.

Na Ilustrada, um descanso para o copy chamava-se Paulo Moreira Leite, que depois ficou muitos anos na Veja, foi correspondente em Paris e hoje está na Época. Paulo tinha o texto perfeito e eu colocava a caneta de lado quando recebia uma reportagem dele. E na Ilustrada havia espaço para publicar tudo, diferente da TV Guia em que havia necessidade de inventar outro texto para caber as informações. O maior desafio situava-se no lead. Meu melhor lead, não canso de lembrar, foi sobre o Cyborg, o sujeito que era metade gente, metade máquina: “Todo mundo tem seu lado humano. O de Cyborg, é o esquerdo” .

Sinto falta, como leitor de jornais diários, principalmente nas versões on line, da função do copy. Noto erros grosseiros que seriam eliminados na primeira leitura. Passam lotado para a edição, que, parece, não lê mais nada. Se der erro, demita-se o repórter. Não deve ser assim. Jornalismo é como cinema, trabalho de equipe, com responsabilidade compartilhada. Tudo se soma para evitar transtornos aos leitores. Depois não se queixem da morte dos jornais. Não é a concorrência da internet que os leva à falência. É a falta de coisas básicas, como um bom copy-desk. Noto agora que meu afastamento das redações coincidiu com o fim da função que eu exercia. Fiz muita reportagem e fui editor várias vezes. Mas o que gostava mesmo era navegar nas matérias que vinham de todos os lados.

Não cuido mais de texto alheio. Quando me pedem, distribuo positivos, pois crítica hoje ofende e pode fechar o tempo. Tenho mais o que fazer. Mas posso ensinar o ofício, se é que existe gente que queira aprender uma função extinta. Copy é como o latim, que não é mais falado, mas é a base da língua. No mínimo, forma escritores. Ou pelo menos pessoas focadas na claridade e força das palavras.


RETORNO - 1. Dei uma copidescada no texto acima, ficou melhor, sem vários ruídos. Todo copy precisa também de um copy. 2. Acho que foram os preconceitos (além da eliminação de funções para aumentar os lucros) que derrubaram o copy. Achavam que o redator "dourava a pílula", colocava cerejinha em cima do bolo da reportagem. Um soldado da Legião Estrangeira não doura pílula, afia adagas e azeita rifles. Outra iéia de jerico era confundir copy com revisor. Revisão é outro departamento, também importante, e que dá grande apoio ao copy. Mas as funções são diversas. O revisor não tem a autonomia do copy, não muda, apenas checa e corrige. Já o copy não pede licença. Deadline não espera.

10 de maio de 2011

O ESTADO EM 1972: JORNALISMO DO MUNDO PERDIDO


Nei Duclós

Fiquei alguns meses em São Paulo morando de favor e fazendo uma matéria por mês no Jornal de Investimentos, editado pelo Celso Ming, e que era um dos veículos do grupo da Gazeta Mercantil. Meu tema eram empresas que tinham acabado de entrar nas Bolsa de Valores. Ming esmigalhava meu texto sem dó e me obrigava a reescrever um monte de vezes. Cansado daquela vida, resolvi viajar para Florianópolis, onde amigos meus tinham alugado uma casa. No primeiro churrasco, fui avisado por Ayrton Kanitz que Jorge Escosteguy trabalhava em O Estado e precisava de um redator. Era minha especialidade: o copy.

Sempre admirei repórteres mas não estava talhado para a função. Nas primeiras matérias me colocavam no copy. Aproveitavam meu texto para corrigir o dos outros. E nisso fiquei,praticamente a vida toda, com algumas incursões nas reportagens e na edição. Quando cheguei na redação, Scotch brincou escondendo-se atrás da Olivetti. Nos conhecíamos do tempo da Folha da Tarde, dois anos antes, da Caldas Junior de Porto Alegre. Acabamos morando perto e remando sem parar no jornal, fechando os noticiários de Nacional e Internacional. Lá estava o Aluisio Amorim, também copy do Scotch.

Lembro que choveu demais aquele ano de 1972 e nos perguntávamos quando teríamos a ilha da magia. Scotch era um dínamo e vivia em conflito com a chefia da redação, a cargo do gentil Marcilio Medeiros, filho. Havia pessoas pacatas como Laudelino Sardá, que jamais se metia em brigas, jovens talentos como Cesar Valente e outros mais animados, que gostavam de implicar com nossa biografia e se perguntavam o que fazíamos ali na terra deles. Na época da repressão braba, todos nós estávamos sob suspeita. O problema era a política, mas meu cabelos compridos denunciavam alienação. Eu, pelo menos, não aparentava perigo. Não iria pegar em armas, já que tinha ainda o agravante de fazer poesia. Já o Scotch, sempre disseram que ele era do partidão, mas nunca vi isso confirmado. Para mim, era um espírito livre, anti-ditadura, como todos nós.

Um belo dia o Matusalém Comelli, que era dono de O Estado, convidou o Kanitz para trabalhar lá. Mario Medaglia, bamba do noticiário esportivo e "jornalista desde que nasceu" também viera do JSC a convite de O Estado, assim como eu e Virson Holderbaum, amigo certo desde os anos 60. Ayrton Kanitz dava show na sucursal do Jornal de Santa Catarina na capital e fazia concorrência pesada. Foi convidado para determinada função, não lembro qual, mas depois de ter pedido demissão, foi informado que seu cargo era outro. Faria coisa diferente do combinado. Foi o que fiquei sabendo, não tenho detalhes de quem partiu a decisão. Isso causou estranheza entre a gauchada, que resolveu pressionar a direção para cumprir a palavra. Em vão. Resultado: a maioria saltou fora e foi assim que se deu o quiprocó de O Estado. Acabei indo mais tarde para São Paulo, onde pousei na redação da Folha de São Paulo e depois em outras, como canso de repetir nas minhas memórias precoces (já esgotei todos os assuntos, nada mais me resta a fazer na terceira idade; posso ir sestear).

Os fatos assim se deram e acabamos saindo da cidade que tínhamos escolhido para viver (acabei voltando,primeiro em 1981 e depois em 2003; aí, fiquei). Ainda rodei algum tempo desempregado, mas a barra pesou. Migrei primeiro para Vitória do Espírito Santo, onde trabalhei no novo jornal A Tribuna, voltei a Porto Alegre para a Folha da Manhã da Caldas Junior em 1974 e finalmente São Paulo novamente, onde passei por vários lugares. Para que servem essas lembranças, tão prosaicas? Só para dizer que faço parte da proto-história do jornalismo brasileiro, aquele que nem é mais lembrado, já que saudade hoje se sente dos anos 80 para cá. Para trás, já é o mundo perdido.


RETORNO - Imagem desta edição: este escriba feliz da vida não se sabe porque, no ofício que abraçou em plena redação do velho O Estado, na Felipe Schmidt. Foto de Cesar Valente, que já fazia blog antes de blog existir.

9 de maio de 2011

A ETERNA CAÇA A GERONIMO


Por que a operação de guerra que matou Bin Laden foi batizada de Geronimo? Talvez porque o herói apache não foi derrotado no campo de batalha, forçou um acordo com o Exército americano, que não conseguiu matá-lo no front. Era preciso vencê-lo mais uma vez, ou de uma vez por todas. Árabe, indígena, para os americanos é tudo a mesma coisa: são os inimigos que merecem o extermínio. O certo é invadir um país estrangeiro – México, no caso do índio, Paquistão, no caso do terrorista – e dar-lhe um tiro. Mas a lenda do guerreiro que obrigou o governo dos EUA a negociar para depois trair o trato e humilhar o chefe continua viva. Não se perde a oportunidade de destrui-la. Mesmo que Bin Laden, apesar de ser um personagem oposto ao de Geronimo, sem dignidade nem carisma, também acabe virando mito,pelo menos para algumas tribos étnicas ou religiosas.

Há três filmes, que seu saiba, sobre Geronimo, um de 1939, de Paul Sloane, que não vi. Mas vi os outros: o de 1962 , de Arnold Laven, e o de 1993, de Walter Hill (Geronimo, uma lenda americana), com roteiro de John Milius. O dos anos 60 tem mais ritmo narrativo e coloca Geronimo como um vencedor, pois impôs condições por meio da resistência. Mesmo tendo no roteiro o personagem militar que condena o massacre, peca pelos olhos azuis de Chuck Connors, o ex-jogador de basquete que fez o papel na força física dos seus 40 anos. O dos anos 90, apesar de intensificar o tributo ao politicamente correto (com atores falando em língua nativa, por exemplo) é um desperdício de talentos. Juntar o roteirista de Coppola e George Lucas, e trabalhar com atores de primeira grandeza como Robert Duvall, Gene Hackman e o emergente e promissor (na época) Matt Damon tinha tudo para dar certo. Mas o filme não “pega”.

Lembro que nas sessões juvenis de cinema na minha terra odiávamos quando o filme era narrado. Em A Lenda Americana, a ação é narrada quase o tempo todo, o que distancia o filme do espectador. A história fica pertencendo à voz que tudo vê e sabe e não a nós, que deveríamos costurar as cenas por nossa conta. Um narrador onipresente tira o encanto de uma leitura ao vivo, enquanto dura a sessão. Fica tudo entregue ao jovem tenente que vai dizendo como a coisa funciona. Chato. O nativo americano Wes Studi (na foto acima), que trabalhou em Dança com os Lobos e O Último dos Moicanos, está perfeito no papel: grave, concentrado, duro. Mas não salva o filme. A derrota total do seu personagem (o que não acontece na versão anterior de 1962) carrega demais o que deveria se destacar, que é o perfil de um mito.

O cinema não pode ter a pretensão de ser realidade, mesmo que Godard sapateie em seus filmes sobre isso. É melhor se entregar à mitologia, mas o desafio é não deixar que ela se transforme em mitificação. Há diferença. Você pincela a lenda sem cair no ramerrão reacionário ou correto. Já existe carga suficiente em todas as produções americanas, que não admitem defecções. Todo filme dos EUA é a favor do país, mesmo que esteja fazendo denúncia. Se aponta erros, essa culpa recai sobre algum malvado. No fim, o mocinho salva a pátria. Não é preciso, portanto, carregar ainda mais na celebração.

A justificativa da caçada fica a cargo do ator Jason Patric no papel do tenente bem intencionado, em que Geronimo confia: “Estamos fazendo um país”, diz ele para Damon. “É difícil”. Ele acaba derrotado e é enviado para um posto remoto e obscuro. O narrador deixa a carreira militar e o chefe índio parte para o exílio na Florida com o resto de seus guerreiros desarmados. Talvez tenha sido uma maneira de matar o mito, pelo cinema. Mas uma lenda dessas, de resistência suicida, não morre nem com mil tentativas. Sempre haverá alguém que, ao se decidir por um feito heróico, gritará: Geronimoooo!

RETORNO - Agradeço as indicações de Miguel Duclós, que no Twitter (@sanhux) foi o primeiro a se interessar pelas origens do nome Geronimo na operação contra Bin Laden, bem antes que articulistas notórios da grande imprensa se ocupassem do tema.

8 de maio de 2011

FECHAMENTO


Nei Duclós

Estavam todos vivos até há pouco
o Tarso com seu jeito louco
o Scotch com a barba de Cuba
o Bi arregalando o olho
juntando laudas com Sergio de Souza

Estavam todos vivos até há pouco
o Múcio sempre nervoso
o Fortuna com cara de ogro
o Marcão Faerman e seus rebanhos
Markito e Gaguinho, que se foram cedo

Estavam todos vivos até há pouco
nas redações de telefone preto
nas teclas de duro alfabeto
nos papéis errando a cesta
nos gritos, gargalhadas, canetas

Estavam todos vivos e nem eram moços
tinham quilometragem em carne e osso
gastavam tudo pois não havia posse
apenas a fúria de escrever uns troços
que eram a vida inteira em papel impresso

Estavam todos vivos ao redor do fogo
que jamais morria por falta de histórias
havia algo maior acima dos armários
ou das madrugadas na ponta do lápis
talvez a eternidade sem se darem conta

Eu estava no meio, aprendendo o ofício
querendo ser útil, um irmão mais novo
um recém chegado ainda sem pouso
recebido como um igual e não era o caso
fui apenas o sujeito que ficou por último

Estive com eles até há pouco
meus irmãos de esquinas e encontros
títulos definitivos, páginas em branco
textos com precisão de linha de tiro
sons de baterias metralhadas ao longe

Por isso mostro hoje esse andar aéreo
como quem procura aquela dúzia de tontos
talvez eu esteja ainda lá, perto da meia noite
quando o mundo explode e não há mais tempo
Não tem por onde sair na hora do fechamento

7 de maio de 2011

VISITA


Nei Duclós

Não tinha visto ainda teu rosto de perto
teu olho aberto rodeado de suor, a testa
Nem o ar de surpresa em toda a página
milagre flagrado em tom de desconforto

Não sabia que tão próxima trazias o soneto
vício a que me dedico com limite de verso
Assim posso encerrar no momento certo
Dizer que devo te ver, desta vez ao vivo

Para enfim sentar quieto no banco da praça
contigo e os pombos, no tempo de tocaia
quando o sino tocar na sombra que te abriga

É o meu corpo que bale na câmara de eco
Correndo por fora, nesta visita escassa
Amor que respira no beijo que demora



RETRNO - Imagem desta edição: Marilyn Monroe

6 de maio de 2011

LONDON RIVER: MISTÉRIO DE UM AMOR DE TRANSGRESSÃO


Para os marinheiros mercantes, o Tâmisa sempre foi o London River. Essa é uma denominação de quem vem de fora, de quem chega na capital inglesa. É uma percepção de viajantes, dos migrantes que aportam em Londres, que tanto podem ser muçulmanos da África, quanto cidadãos britânicos que vivem fora da grande cidade. Eles enxergam outra realidade urbana, longe dos monumentos e dos cartões postais. Habitam bairros contaminados pela complexa e caótica sociedade predatória, onde a sobrevivência é um jogo bruto de mobilidade, pequenos comércios, poluição visual e sentimento de desamparo.

Há um natural desenraizamento nessa situação precária, escassa, provisória e datada. Pessoas que chegam de fora continuam viajando, agora pelas ruas de tráfego intenso, em passarelas onde as paredes exibem rostos de desaparecidos. Viver nos fundos de um mercadinho tocado por um árabe ou passar alguns dias num hotel do subúrbio, caro para qualquer um que não esteja estabelecido como turista ou visitante rico, é se deparar com as entranhas da sociedade, dividida em classes e violenta. Esse ambiente é que alimenta tanto os que vão engrossar as fileiras do estado nas intervenções em países remotos como o Iraque, ou os insurgentes que explodem ônibus e metrô. A guerra está implícita no caos urbano.

É uma situação de guerra – os atentados em Londres em 2005 contra a intervenção britânica no Iraque – que reúne personagens desiguais em London River (Caminhos Cruzados, 2009), do francês Rachid Bouchareb . De família argelina, ele é também diretor dos excelentes Dias de Glória (2006, sobre a participação argelina na II Guerra) e Foras da Lei (2010, mural histórico e ficcional sobre a os anos que precederam a independência da Argélia, filme indicado para Oscar de melhor filme estrangeiro este ano). Sua abordagem é sobre uma transgressão – o amor – entre pessoas díspares (o migrante africano, negro e muçulmano, e a mulher, branca, britânica e protestante). E de como essa relação abriu os olhos dos pais, até então ausentes, que representam a terra (ambos trabalham com plantas) marginalizada pela civilização que devora os filhos.

O conflito entre diferenças étnicas, religiosas ou políticas, que desencadeia o drama, não está em primeiro plano e sim esse despertar que a aproximação familiar experimenta na dolorosa peregrinação em busca do casal desaparecido depois dos atentados. A religiosidade e o trato com a natureza aproxima a identidade do pai do africano (Sotigui Kouyaté, soberbo, o ator do diretor teatral britânico Peter Brook por 20 anos, nascido em Mali, e que morreu aos 75 anos depois das filmagens) e da mãe da garota inglesa (Brenda Blethyn, numa sofisticada interpretação que transparece a caricatura, mas é pura performance de quem domina plenamente o ofício). Os dois se descobrem enredados na mesma armadilha, e partem de suas diferenças para diversas sintonias, que deságuam numa despedida antológica.

O filme trabalha intensamente a elipse, o recurso de colocar o miolo do drama fora do quadro, do que vemos na tela. Sabemos apenas que o casal existe, mora junto e comprou passagens para Paris. O pai, que abandonou o filho quando este tinha seis anos, desconhece completamente a criatura que vai buscar, a pedido da ex-esposa, que ficou na Africa. A mãe, que mantinha uma relação distante e indiferente com a filha, nada sabia de sua vida de estudante na capital. Ambos acabam no apartamento do casal, a compartilhar objetos deixados pela vida em comum. Essas pistas – as fotos, o instrumento musical antigo, as roupas, os móveis, os livros - são a única coisa que resta de famílias destroçadas por uma sociedade hostil e um mundo em guerra permanente.

O africano que queria preservar o olmo desiste de sua luta ambiental e a mulher que gosta de jardinagem tenta tirar algo mais do chão seco e pedregoso. Inútil esforço. O filme é fiel à brutalidade da época e nos leva para a frente desse muro que foi interposto entre as pessoas. Já sabemos disso, nós, os habitantes do mesmo front. Não precisaríamos do cinema para tanto. Mas com a Sétima Arte podemos imaginar que algo mudaria radicalmente se as pessoas, em vez da violência, se entregassem a outra transgressão, o amor, pautado pela espiritualidade, religiosa ou não, que está firmemente ancorada nas linguagens canônicas.

Tanto os livros sagrados quanto as conversas em tempos de paz tem esse poder. É quando exercemos rituais de orações ou sentamos na calçada a compartilhar uma fruta e rimos do Mal que nos fizeram. É a chance que temos de continuar vivos, de cruzar o rio do desespero e os limites de nossas vidas, para chegarmos intactos, ainda humanos, num porto amigável e não mais dilacerado pelo ódio e a vingança.


RETORNO - Imagem desta edição: Sotigui Kouyaté e Brenda Blethyn em cena de London River.

5 de maio de 2011

APRENDER


Nei Duclós (*)

Apesar de toda a demagogia que se faz em torno do assunto, a verdade é que aprendemos pouco. Há uma resistência natural ao aprendizado chamado vaidade. Por isso são raros os momentos decisivos em que fomos pegos de surpresa e obrigados a baixar a guarda diante da contundência de novos significados. O importante são aqueles impactos que mudam você para sempre, em que o aprendizado se faz de melhor forma, pela ruptura.

Costumo definir como divisor de águas a aula no curso de jornalismo da Ufrgs em que o professor nos leu Fernando Pessoa. Eu já tinha 19 anos e jamais ouvira falar no grande poeta. Foi como um tufão varrendo a praia. Fiquei pasmo com a eloqüência da minha ignorância. A partir daquele instante, descobri todo um tesouro literário que eu não tinha descerrado, apesar de me achar bem formado, leitor de muitos autores. Nenhum deles, porém, se manifestara com a força daquele poeta na manhã de outono no distante 1968. Era diverso de tudo o que eu conhecia e tão atual que parecia ter nascido ontem.

Na vida profissional, nada se compara ao convívio próximo numa redação com Mino Carta, o jornalista número 1 do país. Ele contrariava tudo o que se referia ao mito. Primeiro, não “trabalhava” no sentido burro do termo. Mino não se esfalfava em suores frios diante do deadline, não batucava furiosamente sua máquina, não disparava ordens a cada segundo. Ele, aparentemente, deixava tudo andar. Colocava a responsabilidade total, absoluta, na mão dos jornalistas da equipe, que eram ao mesmo tempo pauteiros, editores, repórteres, redatores.

Ao mesmo tempo, intervinha em todas as etapas, quase sem que fosse notada essa sua mão de mestre. Na reunião de pauta, todos davam sugestões e quem levantasse uma lebre era responsável por ela. Mas Mino colocava à disposição do jornalista a mina de fontes, o professor Luiz Gonzaga Belluzo, presidente do Conselho Editoral da Revista, que acorria com nomes, telefones, idéias.

Depois, desenhava página a página, na frente do editor da seção e via o início de cada matéria – e quando necessário, lia até o fim, mas era raro. Perguntava do que se tratava e pedia prioridades. A partir disso, o artista pincelava a diagramação coluna a coluna. Quando vinha o resultado da gráfica era uma festa. Ele jogava o maço de papel impresso na parede gritando:” Isso chama-se matar uma revista!” A uma pergunta tola, emudecia e olhava o interlocutor com espanto. Lendo um lugar comum, anunciava o erro para toda a redação. Se alguém se destacasse, colocava-o contra os outros, “que nada faziam”.

Se ficasse realmente furioso, jogava sua pequena máquina Olivetti no lixo. Tanta pressão gerava desconforto no aprendiz que era eu, que com ele soube como fazer uma revista a partir de quase nada, em todas as suas etapas. Na minha hora de decidir com ele, acabava ficando só diante das páginas em branco. Mandava então seu fiel motorista, o Dó, me buscar no bar. Dó vinha e me dizia: “O Mino está te chamando”.

-Que espere!, dizia eu.

Seis anos disso. Saudade? Toda a saudade do mundo.


RETORNO - (*) Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana

3 de maio de 2011

JUSTIÇAMENTO EM ATO DE GUERRA


Filmes de espionagem são bem melhores do que a realidade. Nenhum filme iria incorrer no ridículo de colocar o bandido mais procurado do mundo numa casa de muro alto perto de uma guarnição militar. Só poderiam se igualar ao que ocorreu no Paquistão pela natureza da ação, que tanto na ficção quanto na vida real é puro justiçamento, extermínio, vingança, um ato de guerra sob a capa de se fazer justiça. Cinema americano não acredita em justiça comum, só em morticínio como expressão máxima da lei.

Podem existir as razões mais explícitas para justificar o ato, mas daí a dizer que a justiça foi feita vai uma boa distância. A não ser que se consuma o conceito das máfias de matar traidores e adversários como um forma de ter paz. Ou então a chamada guerra santa dos fundamentalistas está agora mais do que justificada. Se a morte de Osama Bin Laden foi justiça, então está tudo liberado, como aliás está desde que os Estados Unidos invadiram o Iraque sem ter motivo nenhum, baseados apenas em relatórios falsos sobre armas de extermínio em massa.

Por esses motivos é que o mundo não ficou mais ou menos seguro com a morte do terrorista. Simplesmente eles deram uma satisfação para o povo, que foi vítima do atentado nas torres gêmeas em 2001, ou seja, os eleitores precisavam de uma demonstração de força convincente, já que a carnificina do Oriente Médio foi desmascarada. Sem ter por onde fugir, com a prisão de Guantanamo fazendo água, pois lá se faz justiçamento por meio da tortura e da prisão de inocentes, como demonstraram alguns documentos do wikileaks, então a saída foi capturar Osama que estava nas fuças de todo mundo. Talvez houvesse um acordo, já que Bin Laden foi uma invenção americana, sócio do petróleo dos Bush, como demonstrou Michael Moore em Fahrenheit 911. E com a chegada da campanha presidencial, fosse necessário fortalecer o candidato natural, que tem prestado bons serviços à indústria financeira e de armas.

Obama foi para a televisão dar explicações aos americanos e o mundo pegou carona. Inclusive a Rede Globo, que chegou tarde no assunto e tentou se apropriar dele, como costuma fazer, editando de maneira trombeteira, com seus correspondentes abrindo largos sorrisos de satisfação e vitória. Osama era um problema pessoal da Rede Globo, pelo que vimos no noticiário. Ficam loucos para fazer História e por isso douram os eventos mais importantes com a fantasia global. Dizer que Osama “até” foi contra os EUA é omitir o principal, de que o terrorista é cria americana para combater os soviéticos. Mas isso não passa no furor global, que passou de A Voz do Dono para o Dono propriamente dito. No fundo, pela cara de felicidade dos jornalistas da rede, a Globo fez o serviço e Obama apenas confirmou.

O babacômetro explode com a nova geração de gringuinhos subindo nos ombros dos trouxas para gritar iu-ésse-ei fechando o punho, como se o assassinato de alguém fosse motivo de celebração, mesmo que todas as evidências apontem (e isso é contestado aqui) para o culpado. Se você é universitário não vai tomar banho pelado no lago porque mataram um sujeito ou colocar o chapeuzinho de vaqueira e gritar o nome do país como se estivesse no final de um campeonato mundial. Ainda mais que não houve vitória, o terrorismo continua e promete vingança. O que precisa acabar é a certeza de superioridade que faz com que invadam um país estrangeiro, matem pessoas e não dêem satisfações. Ainda se ofendem, pois mandaram fechar a embaixada e consulados do Paquistão.

É a velha piada de cantar vitória e se retirar rapidamente. Não venceram o terrorismo, nem mesmo Bin Laden, que virou mártir, mesmo sendo “sepultado” no mar. Ninguém viu o cadáver, não explicam como tinha o DNA do sujeito, jogam para os peixes e partem para outra? Obama mata Osama e garante sua reeleição. Será? Bush poderá reivindicar o crédito e os republicanos vão tirar uma lasca do fato. As eleições poderão surpreender.


RETORNO - Imagem desta edição: a cara sombria de Obama e a de pânico de Hillary mostram bem o clima do justiçamento. A foto já estava nos fóruns da internet antes de ir hoje para a imprensa.

1 de maio de 2011

TOY STORY 3: A INFÂNCIA NÃO DESCARTÁVEL


O terceiro filme da série Toy Story (2010, de Lee Unkrich) brinca de cinema. São notórias as citações a vários filmes, a começar por Cool Hand Luke (Rebeldia Indomável, 1967) em que Buzz, o boneco astronauta, reprogramado pelos bandidos, faz uma relação de proibições aos encarcerados, caindo sempre na palavra Box (solitária) no final das frases. É inesquecível essa fala do ator Strother Martin na prisão onde Paul Newman fez história. Há referências aos filmes de terror, inclusive os que usam bonecos sinistros, e aos faroestes (a clássica cena do mocinho que se agarra, por fora, no piso da carruagem), incluindo aí uma sacada do Luiz Carlos Merten quando, no desfecho, há uma referência à despedida entre o cowboy e o menino, no estilo de Shane, de George Stevens.

É a marca registrada de grandes obras e autores: nada surge por acaso, tudo é soma, a começar pela infância. Ela passa, mas não pode ser descartada. Esquecê-la, já disse Sartre na citação batida mas verdadeira, está na fonte da tragédia humana. Toy Story 3 rema contra a o descarte da infância, por meio da determinação,do laço afetivo, da memória, da aventura, do desprendimento e do amor. É disso que se trata. Os brinquedos que não querem ir para o lixo, ou descobrem que a creche é uma prisão capitaneado por um urso de pelúcia malvado, representam a necessidade de se manter viva a memória da infância, passaporte para o sentimento de pertença à humanidade. Fora disso é a barbárie.

A civilização do plástico, que já faz parte da natureza americana, não pode ser desprestigiada pelo sucateamento da invasão chinesa. Pelo menos para roteiristas, atores e cineastas envolvidos no projeto. Isso fica bem claro no filme. Os brinquedos que buscam a salvação são os clássicos da América, como provam os personagens como o cowboy, o astronauta, os Ets. São brinquedos que revelam as modificações da vida americana, desde os que são animados por molas ou cordas até os movidos a pilha. Todos sabem usar o computador, o que atualiza a brincadeira, pois tira o sentido obsoleto de cada produto. Nada se pode descartar quando tanta carga de civilização existe naquelas representações do mundo infantil.

Há uma diferença entre a citação e a reprodução pura e simples, a criação a partir de uma base e o clichê. Toy Story 3 é o anti-clichê e isso fica explícito na sem cerimônia com que trata o casal Barbie e Kent. Este, chamado de metrossexual, usa roupas fabricadas na China que Barbie, para torturá-la e obter uma confissão, começa a rasgar. Outra pista é o que os vilões fazem com Buzz: para tirar sua personalidade a favor dos companheiros, fazem-no regredir ao estado de indústria, ou seja, à personalidade que tinha na fábrica e que é uma sucessão de clichês a favor da tirania. Só a mão da criança para mudar esse perfil. Quando a infância interfere, o produto industrial transcende e se transforma na encarnação de princípios trazidos do berço: a inocência, a credulidade, a solidariedade, o espírito aventureiro, o afeto.

Buzz também extrapola nas modificações e consegue chegar a um status de fuga, que é seu comportamento latino. Para os americanos, o mundo é uma cidade. O bordel fica com os latinos, a lei e a ordem com eles, os serviços e comércio com os orientais. É assim que funciona. É admirável como o cinema americano consegue tanta liberdade para abordar seus temas, e ao mesmo tempo ficam tão fiéis às suas origens (ou ao que eles definem como origem). Toy Story 3 aborda a América como tendo uma base comum, eterna. Os brinquedos podem ser frágeis, mas jamais descartáveis. A infância pode passar, mas nunca poderá ser esquecida. As pessoas mudam, mas dentro de cada garoto há um cowboy. As meninas se tornam adultas, mas não abrem mão do amor e da emoção diante de uma demonstração dos sentimentos.

Toy Story 3: melhor do que os outros dois, que são ótimos. Mas este já nasceu um clássico (ganhou neste ano o Oscar de melhor filme de animação). A infãncia que muda de mãos, passa para a nova geração e é levada como lembrança, referência, memória para a vida adulta é como um filme maravilhoso: guardamos como um tesouro e sempre que for possível, o revisitamos.