29 de julho de 2011

FEDORA: BILLY WILDER FILMA O CINEMA


Nei Duclós

Num enfoque tradicional, cinema é produção e consumo de mitos, encarnados em rostos que imantam a atenção do público. Não é precioso atuar, basta ter essa mágica visual, muito além da fotogenia: o mistério da projeção de personalidades que transcendem a vida ordinária do público, que assim se identifica com algo maior e mais alto. A abordagem oposta é outra ilusão: a do cinema verdade, que aposta em narrativas cruas sobre personagens comuns e não carismáticos. Em vários momentos, esses dois conceitos antagônicos da Sétima Arte entraram em confronto direto por meio de obras, autores, atores e atrizes, roteiristas, produtores.













São processos empresariais que se digladiam e transbordam na tela em conflitos explícitos. É famoso o caso da nova geração de cineastas, como Coppola e George Lucas, que se insurgiram e depois foram tragados pela megaindústria. Mas há antecedentes. Na virada para o cinema sonoro, esse antagonismo era entre o rosto angelical e expressivo de Greta Garbo, a transparência do ego divinal, e o rosto mascarado de Al Jolson em The Jazz Singer (1927), a persona sobreposta ao personagem de maneira clara para o público. Garbo emanava luz em closes majestosos de cinema mudo (apesar do filme ser falado) sobre o convés de A Rainha Cristina (1933); Al Jolson colocava diante do público uma outra realidade: a da imagem de mãos dadas com o som, dividindo assim a atenção que antes ia inteira para o fotograma (e o piano das sessões era apenas coadjuvante e não protagonista, como a música inserida na obra e as falas em voz alta).

Essa ruptura e suas graves conseqüências para o cinema clássico estão magistralmente colocada na obra-prima Sunset Boulevard (1950), de Billy Wilder, em que o narrador morto, biógrafo gigolô e vigarista, interpretado pro William Holden, extorque dinheiro a estrela decadente e veterana (Gloria Swanson, ela mesma atriz que conheceu a fama e estava fora do circuito), alimentando sua ilusão de que continua no auge, quando não passa de uma ruína. Billy debocha do cinema verdade ao colocar o narrador boiando numa piscina e tirando sarro da própria situação. Mas seu drama em forma de comédia, como em toda sua obra, é cruel, pois mostra a derrocada de um conceito de se fazer cinema em detrimento de outro, vencedor, que traz o cinismo para a tela e enterra a mitologia das divas.

Não por muito tempo, pois o cinema sonoro foi ainda mais explícito na sua fabricação de mitos, como a provar que essa essência sobrevive às transformações e mantém-se intacta, como se fosse a razão de ser do cinema. Billy Wilder continuou sua saga de filmar o cinema e é isso que se vê em várias obras suas, como em Stalag 17, em que o prisioneiro se apaixona por Betty Grable em intermináveis sessões de cinema e alimenta sua idolatria com o poster dela de corpo inteiro. No mesmo filme, há um especialista em imitações que a toda hora traz à tona James Cagney, Cary Grant e outros mitos masculinos que irromperam com força a partir dos anos 30, quando Billy, saído da perseguição nazista, chegava com tudo em Holllywood para fazer história.

Ele mesmo aparece num dos seus cantos de cisne, Fedora (1978), numa cena em que filma um baile de gala, cena típica do cinema mitônomo dos 30 em que a aristocracia européia era o modelo dos sonhos de uma república envolvida na depressão e depois na guerra. Em Fedora, que é sobre cinema, o personagem de William Holden ressurge 28 anos depois de Sunset Boulevard como produtor de filmes independentes. Mantem-se idêntica a relação desse personagem, que cruza três décadas, com a atriz decadente – do cinema mudo no clássico com Gloria Swanson e do cinema falado nesta continuação encarnada pela atriz Marthe Keller. O sujeito precisa da estrela que se apagou para levantar um dinheiro. Sabemos do que trata a primeira história, clássico absoluto sobre o terremoto do som na Sétima Arte e a desgraça dos que tinham tudo e ficaram sem nada. Mas o que acontece em Fedora, deste Billy Wilder em fim de carreira, sem cacife dos grandes estúdios e que acaba criando com apoio do escasso dinheiro europeu?

O mestre não abre mão do gênio e junto com seu fiel roteirista, IAL Diamond, conta a saga da estrela que envelheceu e resolveu manter a lenda colocando na roda a própria filha, que encarna o mito. Isso é fatal para a substituta, que, como diz o filme, é uma amadora, não tem o aço apropriado para manter-se firme sob a maquiagem. A insistência em manter o rosto intacto, como quis Greta Garbo ao se recolher no auge da carreira (não permitia que as câmaras captassem sua derrocada física) gerou um estado psicótico na filha,que depois de fazer alguns filmes como a falsa Fedora acaba se apaixonando por um jovem ator (Michael York, interpretando ele mesmo) e desistindo da carreira ao saber que teria de continuar como Fedora até morrer.

O público está cansado de cinema verdade, diz a verdadeira Fedora disfarçada de condessa. Precisa voltar ao mito, à lenda. É o que pensa Billy Wilder em fim de carreira, encerrando assim suas atividades de mestre do ofício, quando homenageia seus ídolos, colocando Henry Fonda como o presidente da academia de cinema que dá um Oscar de consolação para a atriz escondida. Pois o cinema não vive de arte, mas de lucros e se a arte traz lucro, como aconteceu com Wilder em grandes sucessos, melhor. Se não acenar com essa perspectiva, o autor fica fora. Foi o que aconteceu com ele. Mas, em vez de se entregar ao besteirol que tomou conta de Hollywood, ele foi atrás dos investidores europeus, para manter seu trabalho. Mais ou menos como Woody Allen e Roman Polanski hoje, que saíram do circuito e criaram outro para continuar trabalhando.

Billy viu na frente por ter uma visão crua do espetáculo que ajudava a inventar. Tudo não passa de truque e ilusão, dizem os personagens lúcidos de Fedora. Mesmo aqui, nesta obra que pesquisa as engrenagens do monstro e não se limite apenas aos bastidores da Sétima Arte. Tudo é representação, tudo é linguagem. Os gênios sabem disso como ninguém. Por isso são radicais na sua gana de mostrar todas as camadas superpostas da indústria do espetáculo. Contribuem assim, com seu ofício e testemunho, para nos dar esperança de que o confronto entre cinema clássico e intervenções opostas tenham como resultado o triunfo do gênio e a emoção de sermos transportados para uma glória tão efêmera quanto eterna que é o espaço de tempo que dura uma sessão de cinema.


RETORNO - Imagens desta edição, pela ordem: 1. Cena do baile de gala sendo filmada em Fedora.2. Greta Garbo e Al Jolson. 3. Holden e Swanson.

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