9 de agosto de 2011

STATUS E SOBERANIA EM MY FAIR LADY


Nei Duclós

O rigor da língua falada, fonte e ao mesmo tempo estuário da escrita, define soberania nacional e também status social. Só quem tem recursos consegue acesso à formação plena. Isso em tese, no espaço virtual euclidiano da linguagem, já que no Brasil até gente rica está falando errado e mesmo em países tradicionais essa história está bem misturada. Diferente do tempo de My Fair Lady, em que as ameaças eram nascentes, tanto no início do século 20, quando Bernard Shaw escreveu a peça Pigmalião, quanto nos anos 40 e 60, quando a peça foi levada à tela. O problema não estava consolidado como hoje, mas o autor detectou com maestria no momento em que se manifestava.

A história do professor de fonética escandalizado com o pouco caso que a educação inglesa dava à formação escolar dos seus cidadãos, e seu esforço de transformar uma vendedora ambulante numa lady, se reporta ao uso da língua como afirmação imperial (a inglesa), externa, e a conseqüente afirmação interna, da nobreza. No caso do professor Higgins, essa nobreza não era bem a da aristocracia, mas a da elite intelectual. Higgins é um pária da corte, uma espécie de insurgente contra os maus hábitos dos chamados sangue azul. Seu status é o conhecimento e para afirmá-lo usa a fonética - a excelência da fala, que deve se equivaler à majestade da língua escrita de Shakespeare.

O filme de 1964 dirigido por George Cukor e com Rex Harrison como o professor e Audrey Hepburn como a florista é um assombro vencedor de oito Oscar (inclusive o de melhor ator para Harrison). As músicas, de Frederick Lowe e Alan Jay Lerner, são todas maravilhosas. O filme mostra o desprezo intelectual do professor pelos guinchos da mulher pobre, seduzida pela possibilidade de aprender a falar melhor para subir na vida. A ascensão social é uma impossibilidade na Inglaterra (o filme é americano e um escracho contra as manias britânicas). Que o diga Charles Chaplin, que voltou para lá célebre e milionário e foi tratado como sempre tinha sido, um pobre ( e por esse e outros motivos se recolheu na Suíça).

Em conluio com um dos seus pares, Colonel Hugh Pickering (interpretado por Wilfrid Hyde-White), o inglês que estuda fonética na India, a jóia da Coroa, o professor faz uma aposta de intelectuais que podem enganar os toscos aristocratas apenas pela aparência: vestindo sua florista como uma princesa e a ensinando a pronunciar o agá aspirado entre outros truques. Eliza Doolittle era sem berço e filha de pais pobres separados. O pai, interpretado por Stanley Holloway ( indicado ao Oscar de melhor coadjuvante), é um convicto representante da working class que se entrega à bebedeira e odeia quando sobe na vida, pois precisa cumprir os rituais da desprezível classe média.

O professor é vitorioso no seu intento, mas cai na armadilha da relação, pois se apaixona pela mulher que desprezava. A Cinderela acaba conquistando seu príncipe, mesmo que ele seja velho e solteirão empedernido. A excelência da linguagem assim cede aos sentimentos, fica em segundo plano para que Hollywood dê seu recado eterno de o amor que vence no fim (pelo menos essa era a mensagem até os anos 60, quando então resolveram detonar tudo).

Hoje a peça e o filme servem de suporte educacional, pelo pouco que vi na internet. No ensino da língua inglesa a história é uma espécie de referência para reencaminhar as novas gerações, vítimas do esforço da modernidade que tenta destruir a base civilizatória por meio da indústria do espetáculo e de outras demandas de massa. A história serve para mostrar a aliança da elite intelectual com o povo no esforço de desmoralizar a aristocracia.

Ao mesmo tempo, é uma história sobre a possibilidade de superação. Não é o comportamento que define uma lady, mas o modo como é tratada, diz a florista. E o tratamento do inglês que veio da India serviu de apoio para ela driblar os maus modos do professor e se transformar radicalmente. No fundo, a vitória é sua, não de seu mentor. Ela ascende não apenas socialmente, mas na auto-consciência da cidadania, para usar uma palavra recorrente de hoje.

O enfoque deste texto pode ser facilmente contestado. Mas, ao contrário do trabalho acadêmico, que precisa se reportar às fontes de tudo que afirma, e fazer o balanço da produção de pensamento anterior sobre o tema que está sendo abordado, o ensaio não perde tempo. Se limpassem as justificativas e citações minuciosas das teses, teríamos grande arejamento cultural. Isso tornaria acessível o núcleo das questões a um público que não quer se enredar no recorrente hábito de repetir sempre as mesmas coisas. É preciso incorporar os avanços teóricos e partir para a diferenciação já no primeiro parágrafo, senão continuaremos com esse ar de zumbi no mundo que deveria ser uma tarde de sol.


RETORNO - Imagem desta edição: Audrey Hepburn entre Harrison e Hyde-White em My Fair Lady - a aristocracia sendo ludibriada pela elite intelectual aliada a uma representante do povo.

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