30 de setembro de 2011

PORTO XAROPE: A CARTA QUE CAIO F NÃO CONSEGUIA ENCERRAR


Nei Duclós

Sigo hoje publicando as cartas que Caio Fernando Abreu enviou de Porto Alegre (aqui identificado como Porto Xarope) para mim nos anos 70, e que tem causado grande repercussão nas mídias sociais, blogs e jornais. Digitá-las uma a uma, cuidando para que tudo saia na íntegra como ele me enviou é um exercício não apenas de memória, mas de resgate de emoções soterradas, paisagens perdidas, dias ocultos, conversas que o vento tinha levado. Por isso este processo é lento, intenso e revelador. Vamos à carta:
Porto Xarope, 6.6.77

Nei,

eu hoje to tão triste – não, eu tava, agora já passou um pouco, porque eu já cheguei em casa, fiz um mate e to ouvindo o Concerto de Bra(n)denburgo de Bach (“poucos sabem que Johann Sebastian Bach...”), um giorno de cane, como costumam ser os dias nesta cidade, especialmente par quem trabalha na Folha da Manhã (tem coisa pior). Tudo começou às 8h30 da matina, tirando uma radiografia absolutamente sádica de um dente – é assim: o cara enfia ferrinhos nos canais abertos de um dente até localizar o nervo. Quando a agulha pica o nervo (e você se crispa de dor)é preciso que o próprio radiografado fique segurando uma chapinha contra o dente até radiografar. Brrrrr. Tudo bem: no mínimo duas encarnações de karma a menos.

Depois o jornal e tanta, mas tanta gente querendo falar comigo. Tem dias que tenho vontade de escrever nas costas da cadeira “hoje não estou para ninguém” ou “seja breve” ou “genius at Work” ou também “keep distance”. Fui agressivo e desagradável com o San Martin e com todo mundo. Tenho usado botas – fisicamente e no sentido figurado também. Por fim a Praça XV, vir em pé no ônibus, como gado, um passo à frente, outro mais – e aos pedaços chegar em casa.

Eu queria ter te escrito antes. Tinha POTES de trabalho. Me descontaram cerca de uma milha e quinhentos da quinzena, recebi só 900 e só de aluguel tinha 950. Fiquei com menos 50 até o dia 15. Queixas, queixas. A portaria da censura prévia aos livros, jornais & revistas estrangeiros. O negócio do INPS, não tem mais direito a atendimento (embora continue descontando) quem ganha mais do que a monumental quantia de três salários mínimos. O quebra-pau em belo Horizonte. E coisas que não sei, porque não li e ninguém me disse. E um cansaço, e uma sensação de estar escorregando (não individual) prum negócio escuro.

As batalhas de todo-dia parecem inglórias. Claro que a gente insiste. Tenho comprado brigas: esta semana devo falar, quarta, no Clube de Cultura e, na sexta, em pelotas. Quero “dizer coisas”. Não sei se posso, se devo – mas to evitando me omitir e, na medida do possível, através das matérias que faço ou desses papos que pintam ir- que pretensão – pelo menos alertando as pessoas para o HORROR que taí em volta delas e pra necessidade – urgente, urgente – de modificar as coisas.

Ô Nei, não temos nenhum líder, nenhuma ideologia que preste,nós estamos sendo roubados, estuprados e assassinados lentamente, todos os dias. Eu ando cheio de raiva. Acho que todo mundo. E de impotência. E de vontade de agir de uma maneira mais eficiente, mais real, mais imediata. Porque NINGUÉM a não ser pessoas como nós vai fazer porra nenhuma para modificar essa merda toda. A gente não pode, não deve, não tem o direito de se omitir. Apesar das limitações pessoais, das dores individuais ou da própria pele a defender. Que talvez valha muito pouco neste momento.

Pausa. Tomo mate, ouço Bach, fumo Carlton.

Individualmente, tudo – digamos – bem. Cheguei daí com uma energia incrível. Eu tava todo amortecido aqui, eu só tinha dor e um nojo constante de tudo, de todos, um desprezo, um desgosto. Isso aí me sacudiu, a partir da ansiedade mesmo das pessoas, da crispação das situações, do desespero gritante de todo mundo. E Julio, teve Julio. Foram 12 dias de convivência intensa, 24 horas por dia.

Quando cheguei aqui me faltava um membro, uma metade de cérebro. Doeu muito. Tomei meio vidro de Vegostesil (éótimo) e dormi 16 horas. Depois fui aterrisando aos poucos, e perdendo energia, e voltando aquele desgosto, aquela náusea, e contração no canto da boca. mas to resistindo, Che. E tento me quer bem apenas por isso – por insistir e resistir. Nem sempre consigo.

Sábado faz uma semana que me mudei. desde que tinha proclamado minha independência ou me auto-parido, em novembro, tava morando num apartamento em pleno centro (Jerônimo Coelho) onde a paisagem
onde a paisagem
(onde a paisagem)
onde há pais agem



Passou um tempo. Agora é quase meia noite. Eu jantei, fumei, bebi vinho (pouco), conversei com Gui e Graça Medeiros, depois chegou Sandra – e tantas coisas se passam, na real-de-fora e na da-mente-de-dentro-tão-real-quanto. Ô Nei, ás vezes eu fico tão confuso. Agora to meio chapado e acho que antes estava tentando dar umas coordenadas objetivas da minha vida, mas agora eu fico me perguntando se têm importância. Suponhamos que sim.

Aí continuo a te contar. Retome a página anterior, na parte (...Coelho) onde a paisagem – bem a paisagem lãs era um paredão de concreto. Agora estou numa casinha, em Petrópolis, com terra e pátio. Tento me adaptar. De qualquer forma, anyway, me adaptaria. Mas teve coisas/tem coisas boas.
Eu não sei. Mas passa pela cabeça que isso não interessa, e me dá vontade de reler tudo o que te escrevi antes para tentar pegar algum sentido. Mas é tão partido.Ô Nei, eu tenho ficado tão confuso. Tem uma divisão aqui – uma querendo fugir a todo vapor a qualquer compra de qualquer barra e uma outra onipotente, querendo ficar no controle de absolutamente todas as emoções, sensacionais, situações.

Tenho planos. Acho um pouco temerário? utópico? fantástico? escapista? ainda ter planos a esta altura do campeonato, mas – que se há de fazer? – tenho. Tem uma coisa contra a cidade, contra a moral local, estadual, contra a burrice, a estreiteza e a mediocridade crescendo. Há uma possibilidade de conseguir um registro profissional no Sindicato. Ainda não foi possível ir lá (dentista todas as manhãs), mas eu gostaria de cair daqui depois de julho. Acho que esta casa para onde vim e todas as barras que possivelmente poi tarem nela – boas ou/e más – devem ser transadas. Mas eu quero ir. Ô Nei, eu sinto um sufoco terrível.
Me escapam queixas, chicotinhos autopunitivos.

Foi bom e quente ver você. Depois, na tua casa, eu fiquei achando que a vida de vocês tá bastante dura. Que era uma vida muito nua. A partir das paredes da casa, dos poucos móveis – de tudo o que há (ou que não há) de objetos dentro dela. E que isso me dava uma outra face tua. Como te ver no jornal também me dava. E me ocorre que – porra, que troço mais literário – que as pessoas são um pouco quebra-cabeças que você vai juntando pedaço por pedaço (às vezes misturando dois ou mais jogos diversos e fazendo confusões medonhas, ou tentando freneticamente encaixar peças que absolutamente não cabem nos espaços, ou – tanta coisa). Me confundo nessas.

Enquanto te escrevo, me passa uma idéia ubaldiana na cabeça: até que ponto é inviolável tudo isso que digo aqui? (*) Outro dia – há uma semana – recebi uma carta de Madri que foi colocada no correio dia 12 de dezembro de 1976!
Mas não importa muito. Acho que já te disse que ando meio agressivo – tenho pensado que não existe nada absolutamente inconfessável.
Quando eu voltava pra casa, hoje, ao descer do ônibus, quando ia cruzar na frente de uma garagem – de dentro da garagem saiu uma moto em alta velocidade, com um garoto em cima, passou zunindo na minha cara e espatifou-se contra o poste da calçada oposta. Eu não parei pra olhar.

É meia-noite, a minha cuca não tá rendendo mais nada, to dispersando e confundindo. Ô, Nei, eu queria te dar um grande abraço – tem um jeito disso não soar forçado? – aquele dia em que você entrou na sala Vladimir Herzog me deu um ufa! interno. Eu acho que vou cair enseguida nessa briga aí, pra dar um jeito de enseguida cair pra outra fora daqui. Brigas, brigas. Eu quero te mandar um poema aqui do fim, tem a obra completa de Mario de Andrade aqui na minha frente. Vemos ver o que ele sugere:
(abriu nos poemas de amiga, já está viciado)
VI
Nós íamos calados pela rua
e o calor dos rosais nos salientava tanto
que um desejo de exemplo me inspirava, e você me aceitou por entre os santos.

Erguer do chão um toco de cigarro,
fumá-lo sem saber por que boca passou,
a terra me eriçava a língua e uma saliva seca
poisando nos meus lábios molhados renasceu.

Todos os boitatás queimavam minha boca
mas quando recomecei a olhar, oh minha doce amiga,
os operários passavam-se todos para o meu lado,
todos com flores roubadas na abertura da camisa...

O Sol no poente, de novo auroral e nativo,
fazia em caminho contrário um dia novo,
e as noites ficaram luminosamente diurnas,
e os dias massacrados se esconderam no covão duma noite sem fim

Dá um beijo na Ida, outra nos petizes (petizes é bom, não é?). Dá um abraço no Moacir Amâncio e anota lá a direção, Che: Rua Chile, 661, 90000 Petrópolis Porto Alegre (o CEP deveria vir após Petrópolis, e não antes – a minha objetividade às vezes também marca).

Agora abri de novo o Mario de Andrade e peguei ele “sonetizando” lindo. Che, veja estes, a La Augusto dos Anjos (que tenho lido muito):
“Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!...Que eu quero amar a morte
com o mesmo engano com que amei a vida”.

Tô espichando para terminar.
Julio (Santa Hoerst) tem me escrito muito. Tem pintado baixezas & vilezas na história do livro do Pasquim absolutamente vergonhosas. Um pouco por isso, também, a minha cuca está um pouco descacetada. Me dá uma puta decepção e uma certeza de novo que a política-dos-bastidores-literários é, realmente, de vomitar. Blllleeeeaaaarrrrggghhhh! (não é assim vômito de HQ?). A minha cuca tá cheia de idéias pra escrever, mas eu não tenho ousado. Li a entrevista do Ferreira Gullar no Pasquim (leia o poema dele chamado Alegria no Anima nº 2 – achei ele aqui -_ e ele diz que agora só escreve quando é pressionado por alguma coisa interna muito forte. Comigo tem sido assim, não sei se é uma desculpa para a minha falta de método. Esse poema do Gullar aí me incendiou por uns três dias, é uma barra de lucidez meio alucinante, veja:
“O sofrimento não tem
nenhum valor.
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
9nem mesmo o que iluminaria a lembrança
ou a ilusão
de uma alegria)
Sofre tu, sofre
um cão ferido, um inseto
que o neocid envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?
A justiça é moral, a injustiça não.
A dor te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
querem estar contentes.

Esse é A Alegria.
(definitivamente não estou conseguindo encerrar esta carta) .
Sábado foi o aniversário do Dudu SM (Dudu SM é um bom nome prum personagem. não?). A gente fez um jantar aqui e tentou fazer com que com que – quem sabe?- as coisas ficassem um pouco legais, pra todo mundo. Foi meio crispado, meio o final desse poema. Acho que é assim quase sempre. Ou sempre, não sei.
Magra Jane vai sexta embora para o Rio. Eu acho ótimo.
A cidade, ô Nei, a cidade.
O jornal, ô Nei, o jornal.
Mas o inverno, tem frio chegando e aqui em Petrópolis um céu incrível. Que eu quase nem olho, mas quando olho é bom.
Vi um filme absolutamente lindo: A História de Adele H., de Truffaut, um amor alujcinado, romantismo louco, uma paixão levada ao limite da loucura. Dá uma grandeza pros sentimentos humanos.
Sei lá.
Um beijo. Não escreve se tu não puder ou não tiver tempo. Tudo bem. Até
Caio


RETORNO –1. Tempo brabo de censura, Caio se preocupava com a inviolabilidade das cartas em relação à interferência da ditadura e não ao eventual segredo contido nelas. 2. O carinho de Caio por mim e minha família é uma presença recorrente e marcante em todas essas cartas, assim como a relação afetiva que tínhamos, como dois escritores em pleno processo de criação. 3. Pessoas queridas citadas estão aqui como Caio se referiu a elas, sempre do seu jeito literário de ser, considerando cada uma como um personagem. O meu personagem, vê-se nessa carta, era um pouco desafiante e por toda a correspondência interagimos como duas pessoas próximas e ao mesmo praticamente desconhecidas.

DESACATO


Nei Duclós

Então vamos dar um tempo
fim do amor, cura do vício
Passa uma vida, e em Paris
de cara surges na esquina

Finges olho branco, o treino
do desencontro imposto
Desacato no passo em falso
Impacto surdo, mar grosso

Sabes que é o fim da tortura
e o sentimento cobra a fatura
Não finja cílios tão piscantes

Nem tente fugir do secreto
dom de apanhar chuva, charco
na rua, mão trêmula e muda


RETORNO - Imagem desta edição: Rue de Fourcy, Paris, foto de Laura Próspero.

29 de setembro de 2011

GARÇA


Nei Duclós

Recebo o recado no mar:
Sou vendaval, mas isso passa
Aguarde meu sinal
no topo da serra geral

Recebo o aviso do sol:
palavra na sombra, cobra coral
Abismo cruzando a garça
mergulho que não ameaça

Recebo a carta de amor:
aguardo no cais, perto da praça
sou estátua de sal
traga o namoro, olhe para trás

Recebo o abraço afinal:
venha teu corpo, mantra da raça
somos um sopro animal
fique onde estou, colha minha graça



RETORNO - Imagem desta edição: foto de Nirlando Lopes, o @landnick

27 de setembro de 2011

A MUSA JÁ EXISTIA


Nei Duclós

A musa já existia
enquanto quebrava louça
Era pedaço de lua
abraço antes da posse

Era estrela sozinha
no crepúsculo de pólen
era o barulho de espuma
na praia que se devora

e hoje quando flutua
meu coração de mordaça
por entre as pedras acesas
e na solidão das garças

te vejo presa na nuvens
mulher que pisa no salto
a sussurar pernas nuas
sob vestidos de gala

É mais um sonho, me dizem
mas sou profeta de praça
adivinho onde se esconde
o sol curtido no braço

onde convivem em luta
os corpos compromissados
pois é o gozo que tortura
este paraíso em falso


RETORNO - Imagem desta edição: precisa dizer?

AINDA É CEDO


Nei Duclós

Ainda é cedo, amor, para retribuir teu beijo, porque devo esperar a hora certa. Um sinal será dado pelo navio que cruza o rio e fica em frente a nós como um aviso de que tudo poderá acontecer de novo, nossa cama coberta de sonho, a janela aberta para os pássaros. Não devemos pensar em mais nada, a não ser nos desvencilhar desse laço a que nos condenamos e nos impede de viver o que foi dito acima: o Tempo domesticado pelo sentimento ainda vivo, o sopro divino de uma tardia esperança. Sim, palavras bonitas que te lanço porque me resta a sedução do verbo, já que perdi a chance quando estive perto e agora distante inauguro a vontade de rever o que perdemos.

Dizem que nada disso vale e é preciso aquilo que sabemos e já foi experimentado em vão pelas carruagens de sempre. Elas passam, amor, enquanto nós ficamos na beira da rodovia em pânico, esse país quebrado em mil pedaços . Não é mais hora de queixas, pois anulamos a capacidade de ver melhor quando tínhamos na frente a verdade que não ousávamos pronunciar. Ficou tarde para levantarmos do campo, aberto em mil crisântemos. Mas como o sol esboça chegar e tudo fica quieto como na véspera da criação, posso esperar o melhor da vida nova que nos toma o coração que considerávamos morto.

Libero a palavra de seus encargos, visto-a com roupa de domingo para me recuperar do estrago. Tinhas um vestido que despetalei escondido naquela dobra de vento. E eu calçava botas de pano, que não faziam ruído quando inaugurávamos jardins colhendo a esmo flores que em pouco tempo morreriam. Inventamos essa doce compulsão de canteiros enquanto o mato tomava conta dos gerânios. Perdi a noção do que falo, pois apenas exerço a hipnose que te prende como o olhar do bicho de tocaia no pântano. A mágica ainda funciona? Me diga, amor, antes que eu suma outra vez no trem desse destino.

Na estação te vi ainda intacta com teu rosto vermelho de paixão pelo que cultivamos. E nos despedimos, como dois absurdos contratempos. Foi o trem bater no trilho da colina seguinte para eu saber que estava tudo perdido, apesar da promessa e teu bilhete, que guardo ainda. Arranjei até um cofre onde revisito quando chove e imagino que o tempo bom é uma idéia que pertence ao deserto que nos impuseram. Mas um cheiro teu cruza o infinito dessa distância insuportável e levanto para ver a manhã ainda no esboço de um clarão da iminente primavera. Sim, eu falava do inverno, meu amor, e de como ficamos enrijecidos e tontos e como nos recolhemos achando que iríamos sobreviver se nos encolhêssemos até além do limite da insânia.

Mas a chuva parou e as árvores se colocam em guarda como num dia de batalha que mede os adversários com o olhar de escândalo. Há mudez nos ninhos e rútilos girassóis estão prontos para lançar seu amarelo ouro sobre o verniz do dia ainda no esboço. Falo sempre da mesma coisa, amor, e direi sempre, toda a vida e mais a próxima encarnação, se isso existir de fato. Quero a mulher que me enche de mel como um oásis numa paisagem de metais e fogo.

Quero teu amor, e isso é tudo.


RETORNO - Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: foto de Anderson Petroceli, a poesia do olhar do fotógrafo maior da fronteira.

26 de setembro de 2011

RESGATE




Nei Duclós


Ilha de coral partida ao meio
meu coração é resto de naufrágio
pedágio imposto em submerso reino
mulher que mata e só depois afaga

Isso não presta me disseram há tempos
mas quem comanda o braço machucado?
tem vida própria o bruto ferimento
desperdiçando o sangue posto em guarda

Adivinho o porto do teu desassossego
perfil de continente ainda sem pátria
lá pousa o barco do corsário mouro

que é o meu verso, espasmo de combates
corda de esforço extremo em tua amurada
Sou teu remorso em busca de um resgate



RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

25 de setembro de 2011

AGENDA



Nei Duclós

Dormes o dia até o crepúsculo
e acordas farta de luz e sombra
olho ainda tonto de tanto sono
rosto riscado na sobra de cama

Espero impaciente teu abandono
morro alarmado o fim do namoro
Inútil cantar numa gaiola de ouro
onde me puseste com teu logro

E levantas como se eu nada fosse
olhando a janela fingindo pânico
Já? dizes, no capricho do muxoxo

Depois nem jantas, pois tua agenda
acumulou, e o tempo é tão valioso
Eu fico só com esse verso no canto


RETORNO - Imagem desta edição: Les Nimphéas Blanc, de Claude Monet

24 de setembro de 2011

FUGITIVA


Nei Duclós

Nada mais trato contigo
vício de carta em ladrilho
manhã de corpo dormido
pomba em teto mourisco
noite alta no caminho

Não quero amor sem brilho
dividir papo encardido
olho atirado no rio
domínio de mais conflitos
companhia de ruídos

Não sei mais lidar com isso
café na mesa do hospício
aflição quando despida
cheiro no gesto arisco
trapos de uma rainha

Adeus ao verso bonito
insumo de desperdício
sarau de garganta tímida
comenda sem sacrifício
consumo de sopa fria

Podes partir, fugitiva
já que perdi o convívio
e rolas com teu martírio
sou navegante à deriva
no mar do verbo infinito


RERTORNO - Imagem desta edição: foto de Henri Cartier-Bresson

FUGITIVA

Nei Duclós

Nada mais trato contigo
nem luz fosca no piso
manhã de corpo dormido
sesta em sacada mourisca
noite inteira sem abrigo

Não quero toque promíscuo
dividir papo encardido
olho atirado no rio
domínio de mais conflitos
nós da tua companhia

Não sei lidar com isso
café na mesa do hospício
aflição quando despida
cheiro no gesto arisco
trapos de uma rainha

Longe do verso bonito
insumo de desperdício
sarau de oficina escrita
comenda sem sacrifício
consumo de sopa fria

Podes partir, fugitiva
já que perdi o convívio
e rolas com teu martírio
Adorar já não consigo
teu coração à deriva





A SOLIDÃO EM JACK O MARUJO


Nei Duclós

Jack o Marujo acorda na noite alta, vai para o convés e nota a neblina espessa de estranha luminosidade. É você, sereia? balbucia o capitão

Ela levou sua luneta e suas medalhas, capitão, disse o papagaio. Dei para ela, disse Jack o Marujo. Daria mais, se mais de um coração tivesse

O amor não existe, disse o corsário. O que há é o butim. Certo, disse Jack o Marujo. É por isso que saqueaste os 7 mares depois que ela te abandonou

O que mais te perturba quando o amor dá um tempo? perguntou o anjo. O silêncio, disse Jack o Marujo

Nenhuma carta, e-mail, nada? perguntou o papagaio. Só uma música, mas eu quebrei o cd quando ouvi os primeiros acordes, disse Jack o Marujo

Então vamos estender a rede, disse o papagaio. Amor perdido se cura com uma boa pescaria. Vá você, disse Jack o Marujo. Eu vou colar o cd

Mas ela levou algo de valor do barco? perguntou o papagaio. Nada, só algumas horas de felicidade juntos, disse Jack o Marujo

Qual o lugar mais remoto que visitou, capitão? perguntou o aventureiro. O coração da sereia, disse Jack o Marujo

Chegou a primavera, disse a sonhadora. De que me adianta? disse Jack o Marujo. No inverno eu tinha a sereia

Está quieto demais, capitão, disse o tenente em visita ao barco. Perdi um amor, disse Jack o Marujo. Custa um pouco até sair do luto

Onde pomos as flores? disse o faxineiro. Bota no vapor. Vou inundar o mar com o seu cheiro, disse Jack o Marujo

Agora não há mais tempo, perdemos a maré, disse o Imediato. Melhor, assim posso ficar mais um dia agarrado à esperança, disse Jack o Marujo

Sereia pode saltar do barco no meio da viagem, disse Jack o Marujo para o Grumete. O que não pode é levar meu coração junto

E agora, navegamos? perguntou o Imediato. Vamos aguardar mais uns instantes, disse Jack o Marujo.Senti um perfume despertando.Ainda há tempo

Ela mandou uma mensagem cifrada, disse o Grumete. Um pacote de conchas que colhemos juntos, disse Jack o Marujo. Bandida!

Ela pensa em ti, mesmo curtindo o Baile da Primavera, disse o papagaio. Sorte tua que tens asas para escapar da prancha, disse Jack o Marujo

Cadê a sereia? Não estava de cama? perguntou o papagaio. São sempre assim, disse Jack o Marujo. Quando melhoram vão comemorar longe de mim

Ela só virá à noite, disse o mensageiro. Desde já vou me dedicar à tarefa de ser um infeliz, disse Jack o Marujo


MAIS PAPAGAIO

O papagaio não saía do ombro do novo grumete. Você é fresco? perguntou Jack o Marujo. O grumete não tem tanta sorte, disse o papagaio

O papagaio me beliscou, disse a sereia. Mas ele é fresco, disse Jack o Marujo. Vai passear que vou abrir o freezer pra ela,disse o papagaio

Esta madrugada é o início da primavera, disse o papagaio. Eu sabia que tu era fresco, disse Jack o Marujo

Um Almirante se conhece pelo botões, disse o papagaio para o visitante. Vou mandar te abotoar,disse Jack o Marujo

Muito bom, disse o Almirante. Foi o sr. que fez, capitão? A história dos cafés se divide entre antes e depois deste café, disse o papagaio

O sr. vive no passado, disse o vanguardista. Então essa sua observação já está me fazendo compahia, disse Jack o Marujo

Vou aproveitar o dia sem carro para passear de carro, diz o piadista. Venha até o barco para experimentar a prancha, diz Jack o Marujo


A CORAGEM TEM OUVIDOS

Acho besteira esse negócio de comemorar a Revolução Farroupilha, disse o grumete. Quieto,guri,que a coragem tem ouvidos, disse Jack o Marujo

Que país é esse? perguntou o scholar. Um passageiro que se atirou da amurada do barco com a âncora amarrada ao pescoço, disse Jack o Marujo

Gostaria de voar, capitão? perguntou o Brigadeiro. Mar é ar, disse Jack o Marujo. E os peixes são suas asas

Estamos prontos para partir, disse o Grumete. Respeite a autoridade do Imediato, disse Jack o Marujo. Não se aproprie do que não lhe pertence

As pessoas são más?perguntou o garoto.Só quando roubam o lugar dos outros. Isso acontece o tempo todo,mas não com todos,disse Jack o Marujo

E depois da primavera, o que vem? perguntou o garoto. Vem a barbárie, disse Jack o Marujo

RETORNO - 1. Imagem desta edição: obra de Giorgio De Chirico.

2. Leitores já deram o título do livro de Jack o Marujo, que está sendo formatado.

3. É costume, no twitter, os admiradores do capitão o cumprimentarem, mandarem abraços, criar hashtags e às vezes até arriscar algumas frases como se fossem dele. Mas mesmo este escriba aqui, @neiduclos, precisa ter cuidado na hora de transcrever as frases, pois o personagem tem sua identidade própria e não admite defecções ou forçações de barra. Portanto, as falas do capitão são pessoais e intransferíveis, como se costumava dizer anos atrás.

4. O bom é saber que @Simone_only está “lendo as aventuras do Jack o Marujo; ou de @CRF_Rafa (Rafael Leandro) que “Jack é o cara”; ou de @PagodeFM: “Jack o Marujo não disse nada hoje ? Estaria ele dormindo ainda ?” ; ou de @LandNick (Nirlando Lopes) que passei “a noite tomando umas e conversando com Jack o Marujo! Grandes papos!”.

5. Respondo a todos, dizendo que saio do barco cedo e no dia seguinte espero o capitão vir ao convés. Respeito é bom. O cara anda armado. Ou explico a origem da sabedoria: Jack sabe, Jack diz. É muito mar lavando a palavra.

23 de setembro de 2011

LIVRO


Nei Duclós


És o livro que me tenta
e passo a tarde tecendo
nos parques de sujo feno
flor de plástico suspeito

Não atento ao realejo
só na forma do desejo
abraçado à tua ausência
faço de conta que escrevo

Dói demais essa doença
sem futuro nem sujeito
sigo a pé o teu cortejo

Com tanto verso, te perco
e o meu destino é o acervo
que atulho de modo incerto


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Toulouse Lautrec.

22 de setembro de 2011

DUELOS ENTRE O AMOR E A SOLIDÃO



Nei Duclós


Resenha publicada na revista ISTOÉ 11/05/1988 sobre o livro Os Dragões Não Conhecem O Paraiso, de Caio Fernando Abreu. Companhia das Letras, 157 páginas.


A lucidez fecha as portas do paraíso. No campo minado da linguagem de Caio Fernando Abreu, o paraíso significa a “eterna monotonia de pacífica falsidade”. Enxergar é não ter contemplação com ninguém. Por isso, desfila nos treze contos que compõem este seu novo livro, ao lado de uma personagem central — tensa com a idade e o próprio corpo -, uma fauna urbana nomeada pela adjetivação inspirada em equívocos de comportamento, como O Homem Independente Que Não Necessita Mais Dessas Bobagens de Amor ou A Mulher Totalmente Liberada Porém Profundamente Incompreendida.

Enxergar, para Caio, é desvendar, entre outras coisas, a adolescência cultivada no interior do Rio Grande do Sul — onde nasceu em 1948 —, ambiente de onde saem contos primorosos como Pequeno Monstro, que descreve a descoberta do outro, primeiro passo para a psicanálise e a transcendência. Livrar-se da carga cultural do interior implica, no entanto, um paciente trabalho de recuperação da linguagem do passado.

É nesse território de difícil acesso — pois é fácil cair na pieguice — que Caio constrói textos antológicos, como O Destino Desfolhou, descrição de uma desilusão amorosa do 12 aos 16 anos de idade. Para isso, resgata palavras incomuns, de uso regional ou presas ao tempo. Tendo o cuidado de não limitar os assuntos em fechados compartimentos, o autor combina habilmente o pesado clima de uma cidade provinciana e suas perspectivas com a leveza dos diálogos, a poesia das descrições, a riqueza dos detalhes.

Todo esse universo compilcado e exausto chega ao ápice em Linda, uma História Horrível, que descreve a visita da personagem central à casa paterna. Revisitar a infância, com todo o seu horror exposto na velha casa, é o caminho para tentar, de volta à grande cidade, entender a idade, o corpo e resgatar possibilidades de uma superação.
Não é, também, um caminho fácil. Na voragem de contos como Saudades de Audrey Hepburn, Dama da Noite e Sapatinhos Vermelhos o autor desmonta as ficções urbanas da era da AIDS. Uma viagem inperdível, onde a solidão duela com o amor o tempo todo. Caio, nestes contos, detecta múltiplas personagens, que tanto podem ser um publicitário, uma prostituta, um psicólogo. Gente lúcida da mesquinharia ambiente, que, sem concessão, descreve a rotina agônica de hábitos tidos como excêntricos, mas que no fundo revelam apenas o horror de estar vivo.

É assim, pela meticulosa construção de uma linguagem própria, que o pequeno monstro do interior, pelo excesso de. lucidez, traça o perfil de suas obsessões. Essas, num truque onde entram o sonho e a emoção, encarnam na figura do dragão. É ele que convive com o escritor, como metáfora de libertação: os dragões, como os pesidelos, não têm existência real. O que existe é um autor diante de suas palavras, ordenadas pela paixão de continuar vivendo.

Não se trata de buscar a salvação, já que o áspero caminho escolhido por Caio Fernnando Abreu, desde sua estréia em I970 aos 21 anos, com o livro de contos Inventário do Irremediavel, não permite soluções óbvias nem otimismo. Essa coragem - que gerou já sete livros, entre eles O Ovo Apunhalado (1975), Morangos Mofados (1982) e Triângulo das Águas (1983) — justifica plenamente o prestígio de Caio no meio literário brasileiro. Um prestígio construído com a força dos verdadeiros artistas.


RETORNO - Esta minha resenha não constava mais nos arquivos aqui de casa e foi enviada por e-mail por especial gentileza de Laura Souto Santana.

TINTA


Nei Duclós


Perdão,amor, por te querer tanto
sentir dá rasteira em teu apreço
o que fazer de mim, traste supremo
pássaro de praia contra o vento?

Não temo nada, a não ser perder-te
ver a chance do rio sugar a escama
não importa se o verso traz bocejo
fogo do vale longe da montanha

É bizarro ser se desconheço
o que antes de você foi o poema
inventor do sonho ainda no berço

Nada lhe dou a não ser soneto
é pouco, mas é só o que tenho
Um pedaço de papel e uma caneta


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

21 de setembro de 2011

O MESTRE DA LOROTA


Nei Duclós

Todo mundo já pagou esse mico: treinamento, seleção de emprego, up-grade corporativo, lá está o sabichão no comando, contratado para demitir, humilhar, cortar despesas alheias, dar cursos sobre o óbvio e chamar tudo isso de consultoria. Precisamos nos vingar. Vamos flagrar esse cara. Veja o que, no fundo, ele de fato diz.


INSTITUCIONAL

Já pensou? disse o Mestre da Lorota

O Mestre da Lorota faz lobby em campanhas corporativas e é recompensado com mensalidades a troco da falsos papers para instituições notórias

O Mestre da Lorota formata um treinamento corporativo para arrancar da empresa uma grana preta, que divide com os seus contratadores

O Mestre da Lorota pode ser identificado quando diz que você é culpado de tudo o que lhe acontece e faz disso quase uma religião

O Mestre da Lorota transforma o óbvio em um manual em dez lições, a mil reais cada uma, e diz que isso é mudança de paradigma

Um dos truques do Mestre da Lorota é se fazer de interessante, dizer bizarrices vestindo terno lustroso de alpaca e exibindo cabelo lambido

O Mestre da Lorota sacode afirmativamente a cabeça depois do final de frases contundentes. Assim incentiva a platéia a chegar à sua altura

Sabe como é que é? disse o Mestre da Lorota

Por que? perguntou o Mestre da Lorota para a platéia que o remunerou na palestra. Porque assim é que é, respondeu o Mestre da Lorota


CORPORATIVO

Precisamos inventar mais despesas, disse o executivo para o assessor. Contrate o Mestre da Lorota, disse o especialista

Meu curso é fundamental para quem passou por decreto e baixou o índice do Enem,disse o Mestre da Lorota.Equivale a um título Horroris Naúsea

O sr. é um charlatão, disse o delegado. As pessoas gostam de show de mágica, disse o Mestre da Lorota

O sr. não devia ter suspendido meus honorários, disse o Mestre da Lorota para o candidato derrotado. Nem dizer que aquilo era do Shakespeare

Mas o Sr. demitiu todos! Além da sua consultoria cara, indenizar vai custar uma nota, disse o assessor. Tenho escritório trabalhista, disse o Mestre da Lorota

Batemos um recorde. Preenchemos todas as vagas disponíveis para o exercício não remunerado da função de desempregado, disse o Mestre da Lorota


TREINAMENTO

Falem agora de seus problemas mais intimos. Homens permanecem na sala e as garotas podem ir para o meu reservado, disse o Mestre da Lorota

Mas essas frases estão todas na internet e foram escritas por outras pessoas, disseram os alunos. Agora é tarde, disse o Mestre da Lorota

O treinamento de hoje vai imitar o que se ensina nos haras, disse o Mestre da Lorota. Os obesos agora vão montar nos magricelas

Leiam a página 43 do livro "Quem roubou meu gorgonzola tem bolso fedido", disse o Mestre da Lorota. Depois se atirem pela janela

Arrastem-se no chão dizendo porque querem continuar neste emprego, disse o Mestre da Lorota. Não caprichem. Ganho por pessoa demitida

A turma da esquerda recorta em forma de elefante o papel de celofane vermelho, disse o Mestre da Lorota. Os da esquerda fingem ser coelhos

Vamos dar as mãos e fazer uma roda, disse o Mestre da Lorota. Agora todos gritam seus sonhos. E transformem-se no seu animal favorito!


CONTEÚDO

Estou com dificuldade no conteúdo do meu curso, disse o parceiro. Use a palavra atitudinal, disse o Mestre da Lorota.

Sempre que achar um pensamento interessante dando sopa na rede assine, disse o Mestre da Lorota. E de vez em quando ponha Clarice Lispector

Vou agora repassar a técnica zen fundamental para a busca perene do conhecimento, disse o Mestre da Lorota:Selecionar, control c, control v

O prêmio Consultorias Vitoriosas vai para o Mestre da Lorota e seu Curso Avançado de Apropriação Indébita de Frases Alheias

Mas isto é do Tchecov! disse o aluno escandalizado. Quem já leu Tchecov não precisa mais dele, disse o Mestre da Lorota

Muito bem, só terão aula os alunos que compraram meu best-seller Lorotas Libertam, disse o Meste da Lorota. Os outros passem no caixa

Meu curso é um acervo atitudinal para encher lingüiça, ludibriar os acionistas e extorquir uma grana, disse o Mestre da Lorota. Está contratado, disse o CEO

Eu devo então investir minha indenização em papéis? perguntou a demitida. Sim, tenho vários aqui na pasta, disse o Mestre da Lorota



RETORNO - Imagem desta edição: Charlie Chan, que não tem nada a ver com a história, mas tem o clima.

FUGA


Nei Duclós

Abro mão da posição
do front
e arredo pé da retaguarda

Fujo depois de cruzar
o monte
jogo fora arma e farda

Viajo à noite por estações
sem fôlego
escondo o coração na mata

Perdi a coragem quando lutei
a soldo
mas o medo não me desacata

Regresso ao ponto onde partiu
meu rosto
moço jurado pela espada

Resgato o rumo que me leva
ao porto
de navio pronto para a fada

Talvez me prendam se houver
enrosco
contra o amor ermo de batalha

Mas por enquanto meu comboio
arrulha
como pombo correio na nevasca

Prepara a cama mesmo que eu
te canse
ao amassar o barro dessa espera

Sou ainda o soldado partido
que te ama
e deixa tudo pela primavera


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

20 de setembro de 2011

ILUSÃO


Nei Duclós
Mesmo que o tempo sobre o ombro
te deixe intocada para o beijo
e tudo não passe de uma lenda
contada depois de tanta cena

e for quimera, como antigamente
se dizia do calor platônico
e o desencontro ceife como louco
a ilusão desperdiçada na colheita

e tudo for besteira como nos romances
que se liam escondidos entre espantos
e saibam que jamais o toque e o pânico

despertaram o sangue verdadeiro
prefiro achar que mesmo assim o sonho
é maior quando há amor e não recreio


RETORNO - 1. Imagem desta edição: Campo de Força, fotaça de Anderson Petroceli. 2. Este é mais um poema da série em homenagem à poesia abandonada de antigamente.

JACK O MARUJO E O AMOR


Nei Duclós

O capitão está dando trabalho. Além de transmitir suas respostas, tenho me dedicado a atender a curiosidade e à abordagem do seu grande fã-clube, que aumentou consideravelmente depois que ele se aprofundou num dos seus temas favoritos, o amor. Mas tudo o que e relaciona a Jack o Marujo é feito com a dedicação que devemos ter aos sábios que disseminam para todos seus conhecimentos, tão raros quanto estimulantes.

@sulains, acompanhante fiel do marujo, pergunta pelo paradeiro de Jack, que ficou um dia sem falar. Respondo que o capitão tem seus rumos. Nem sempre dá para segui-lo. Só quando senta de novo no convés ou no cais ele responde às visitas. @PagodeFM pergunta se ele é pirata. Digo: Não necessariamente. Tem o perfil, mas vai por outros caminhos. Jack é original, apesar do molde conhecido. Tiro as frases de Jack do dia, quando transcendemos o Tempo e encaramos cada minuto como o último sobre a terra.

“Adoro Jack o Marujo, personagem do @neiduclos”, diz @Gatodealice (Silvia Oliveira). Ela fala por muita gente. Como é o caso também de pessoas como @robertarvieira, @FernandaMMSM, @soniatamer, @marisascruz, só para ficar nas citações mais recentes. Sem falar dos que mandam um abraço para o personagem (sou só um intermediário, como todos sabem). No Facebook, então (para onde vão as frases mais fortes), é um espanto, o capitão faz um estrago. A repercussão se espalha como cardume em época de desova. São mulheres e homens, jovens e veteranos, civis e militares. A todos Jack seduz com sua verve.

Vamos à nova seleta de frases da obra que já dobra a curva dos mares de tão significativa. Além do amor, mais dois itens, um deles sobre a inominável candidatura política do capitão.


JOGO DA SEDUÇÃO


Teu capitão não vai ver o jogo? perguntou a confidente. Não, ele prefere o amor, disse a sereia

Porque vc não canta mais para atrair os marinheiros? perguntou Jack o Marujo. Porque um deles não se afogou, disse a sereia

Gosta de música? perguntou a harpista. Sim, disse Jack o Marujo. Frequento o bar onde as sereias cantam. Sou o único que volta para o barco

Ele está louca pelo sr., disse o amuado. Não, seu trouxa. Quer apenas ouvir frases de amor de alguém. Pode ser você, disse Jack o Marujo

A quem o Sr. pertence, capitão? perguntou a rainha. Apenas ao meu coração, majestade, disse Jack o Marujo

Está chorando, capitão? perguntou a sereia. Não, foi só uma lembrança que passou um pano molhado nos meus olhos, disse Jack o Marujo

Não queria te assustar, disse Jack o Marujo. Mas hoje os carniceiros de peixe estão bêbados. Sei me defender, meu capitão, disse a sereia

Gostei de ver capitão.Caprichou na farda, hem?O que houve? disse o anfitrião. A sereia passou a ferro revirando os olhos,disse Jack o Marujo

Homem não chora, capitão? perguntou a visitante. Só quando uma lembrança se impõe no toque de silêncio, disse Jack o Marujo

Passei o dia te esperando. Notou que eu estava aqui? perguntou a navegante. O teu perfume tinha me contado, disse Jack o Marujo

Como consegue dormir neste barco, conta cardumes?perguntou a insone. Não, viro para o lado e ronco. Netuno faz a ronda, disse Jack o Marujo

Choro pq vc falou q quer todas, disse a sereia. Eu menti, disse Jack o Marujo. E quem garante que não mente agora? Ninguém, disse o capitão

Já que o estoque de mel foi renovado, quero escutar algo doce, disse a sereia. Faça minha barba, disse Jack o Marujo

Preencheram a vaga de sereia? perguntou o cardiologista. Sim, disse Jack o Marujo. Ela está chegando. Traz meu coração para o sr. examinar

Por que o Sr. não diz logo que gosta de mulher em vez de dizer sereia? perguntou o pragmático. Para fugir da encrenca, disse Jack o Marujo


JACK CANDIDATO

O que o sr. acha da democracia? perguntou o político. Conhecia antes de ir para a zona, disse Jack o Marujo

Queremos que o sr. se candidate, disse o dono de partido. Aceito, disse Jack o Marujo. Vou lutar pelos direitos das sereias

Sou candidato, vou lutar pelos seus direitos, disse Jack o Marujo. O que vocês mais precisam? Batom, responderam as sereias

Para acertar o país precisamos de uma boa guerra! disse o coronel aposentado. A que está na nossa porta não serve? perguntou Jack o Marujo

Qual seus propósitos ao entrar para a política? perguntou o repórter. Já abri muitos cofres, disse Jack o Marujo

Vamos aterrar o porto. Precisaremos do seu voto, disse o dono de partido. Certo, disse Jack o Marujo. Não gosto quando acenam para os navios

O sr. estudou? perguntou a mestra. Coloquei os professores na prancha e mandei contar até dez. Aprendi assim a tabuada, disse Jack o Marujo

O sr. já esteve na China? perguntou a viajante. Já, disse Jack o Marujo. Mas só uma vez. Não consigo fazer a segunda viagem. Emperra no 99

Nada lavará a mancha que a política deixará na sua biografia,disse o líder. Será?E se eu usar escama de sereia como lixa?disse Jack o Marujo

Está pegando mal sua candidatura, disse o papagaio. É só um truque, disse Jack o Marujo. Eu não acredito em duende


JACK TEM A MANHA

O que é a esperança? perguntou o centro-avante. É a que fica no banco quando o medo ocupa a posição de titular, disse Jack o Marujo

O sábado promete,capitão?perguntou o guarda.Sim,um grupo de aves vai viajar para outro mundo,disse Jack o Marujo.Quero ouvir o ruído de asas

Correios estão em greve, disse o estafeta. Droga! Eu sabia que tinha que aumentar a dose de alpiste para meus pombos, disse Jack o Marujo

Quero te apresentar minha nova namorada, disse o conselheiro matrimonial. Como vai, Gertrudes? disse Jack o Marujo

Precisamos valorizar a democracia, disse o corrupto. Quanto está valendo no câmbio de hoje? perguntou Jack o Marujo

Passou o dia fora, capitão? perguntou o fiscal. Fui inaugurar um navio, disse Jack o Marujo, mas o champanhe desmontou o casco. Era chinês

Todo mundo já foi assaltado nesta cidade, menos o sr. Qual o segredo, capitão? perguntou o segurança. Minha catinga, respondeu Jack o Marujo

Como o sr. se define enquanto ser humano? perguntou a psicóloga. Sou metade peixe, disse Jack o Marujo

Qual seu signo?perguntou a astróloga. Sou peixes, ascendente touro,lua na gávea e cruzeiro do sul se jogando no abismo, disse Jack o Marujo

O sr. já vai embora? disse a platéia. Preciso acordar cedo, disse Jack o Marujo. O sol não gosta de ser ignorado e pode voltar a dormir


RETORNO - Imagem desta edição: Tyrone Power e Scarlet O´Hara em Black Swan, 1942.

FALTOU-ME O CHÃO


Nei Duclós

Faltou-me chão, sereia
quando busquei pé
no mar onde afoguei-me
e nenhum pedido de socorro
me salvou do canto
onde caí na graça mortal
da tua bateia

Selecionaste o joio
porque assim dominas
o vil rodeio
dessa conquista
O pior da colheita
é o que garante
o bruto choque do teu reino

Confiei no mal que me define
como se fosse
suficiente para
convencer-te
Tua doce faina
era pior
e me jogaste a rede

Foi assim que sucumbi
naquele alto mar de medo
pois temo teu laço
minha deusa
e não melhoro para
o grito do amor
soltar os remos



RETORNO - Imagem desta edição: Gregory Peck como o capitão Ahab, em Moby Dick, de John Huston.

18 de setembro de 2011

HERANÇA


Nei Duclós

Estou só neste ermo em que sou vago
e apascento o resto da minha herança
ponho roupa surrada, cuido o gado
e só contigo divido o meu estrago

Para tantos que me escrevem e sou grato
acuso recebimento de lembranças
alimento o reservado que me encanta
cartas de zelo e sóbrio pagamento

Porque perdi em negócios e confiança
depositada em cofres sem cuidados
por mais que me acenasses com reclames
acabei cultivando o meu naufrágio

Usas trança, apesar de estar no mato
porque assim te pedi em casamento
e manténs o acordo dando trato
a cada passo apesar do meu lamento

Pudera saber o quanto sei agora
e se revela como luz na manhã clara
a certeza do amor guardando o campo
e o timbre da tua luz forrando a sala

Mas como aprendo só depois do choro
de todo o trigo colhido por tormenta
o que fica são teus olhos, minha pastora
a única riqueza que contemplo



RETORNO - Imagem desta edição: obra de Milliet.

17 de setembro de 2011

TUITAR É LUTAR


Nei Duclós

Sim, melhor seria continuar nos artigos, mas as frases curtas, incisivas, colocadas no ar e tendo retorno imediatao é mais sedutor. São no fundo palavras de ordem, agitprop, work in progress, tudo o que as vanguardas literárias e políticas queriam. Vivemos na sociedade do espetáculo. Precisamos da agilidade e da contundência na arena aberta das mídias sociais. É o que muita gente faz. É o que eu faço. Os artigos continuarão a sair. Mas agora vamos a uma seleta de frases do Twitter e Facebook. São conceitos pelo avesso, em sua maioria. Fingir entrega ao lugar comum para dar-lhe uma rasteira.

Nesta edição, reproduzo o debate que tive o privilégio de manter no Twitter com a inteligente, preparada, ética e bela Angela Albino (foto), deputada pelo PC do B e possível candidata à prefeitura de Florianópolis nas próximas eleições.


ANTI-CONCEITOS

Fora de série é aquilo que é multiplicado aos milhões. Imperdível é aquilo que deve ser visto pelos outros. Idiotia é o poder de mando dos ressentidos. Tomar posse é se apossar de tudo o que o cargo possui. Portal é onde as notícias limpam os pés. Apareço sim é um aperto de mão da indiferença. Para sempre dura até a esquina. Chegado é o cara que batem a carteira e ele não se dá conta. Melhor agora é quando lamentamos o súbito aparecimento do Outro.

Fica com Deus é blasfêmia de alcoviteiro. Ninguém mais ninguém menos é quando Deus ainda não tinha criado Adão. Nada mais chato para Deus do que um fundamentalista carola. Deus joga truco com os ateus. São mais divertidos. Sonho de consumo é ter pesadelo com a dona da rede de varejo. Dever de casa é quando jogamos video-game. Saia justa era quando os gregos aplicavam a lei. Boa notícia é quando os lagartos se recolhem.

Na hora em que eu perco a esperança, ela volta. Blogs são espaços autorais palmilhados pela liberdade. Teoria da conspiração é a evidência internada num hospício pelos criminosos. Deixa que eu pago o cafezinho é o único favor sobre a face da terra e custa caro. Pinta lá em casa é fala de comédia stand up. Talento é crime hediondo punido com limbo eterno. Quando o mediocre fareja o talento, demite.


CAIXINHA ÉTICA

Democracia é o sistema que permite que todos, indistintamente, roubem, desde que estejam no poder. Liderar pesquisa é adquirir voto no cartão de crédito. O pragmatismo político subornou o talento político de gerações que sofreram a marginalização e o exílio e as colocou no colo da bandidagem. Na hora da ética assumir o poder ela perdeu sua essência ao achar que poderia usar o caixa para atingir seus propósitos. Virou refém

Passeatas contra a denúncias de corrupção, comprovadas (tanto é que os ministros caíram) é mais do que conivência, é escravidão. Passe ao largo com sua arenga. Se nada te convence, é sinal que estás agindo de má fé. Um grupo de matadores assumiu as instituições e as leis e quer nos convencer que isso se chama democracia. Em outros países,claro.

O universo foi criado pelo ex. Só que o PIG ainda não fez essa denúncia. A obra mais importante do PT foi subverter as consciências que ofereciam as melhores chances para o país sair da lama. Não há amizade que resista quando você vê pessoas brilhantes defendendo a corrupção como se acreditassem na inocência dos facínoras

JOGO DO CAPITAL


Transformar crédito podre em receita para especular na bolsa, gerar crise e ser salvo pelo dinheiro público não é capitalismo. É assassinato. Abordar a crise como se fosse pecado cometido pelas nações e não esquema pré-moldado da indústria financeira não é análise. É conivência. Destruir as moedas nacionais em função de unidades monetárias submissas à especulação não é globalização, é assalto. Sucatear as indústrias nacionais colocando 1 bilhão de escravos chineses para gerar imitações baratas não é modernização, é barbárie.

O capital inventou o lucro, a lei inventou o emprego, a empresa inventou a demissão e o trabalho, a greve. Capitalismo é exploração em função do lucro.Revolução é exploração em função do prejuízo (nota: esta frase gerou o debate com Angela Albino, veja abaixo). Liberdade é o que foi enterrado para sempre na neve da montanha, sem deixar vestígios. Papiros em ruinas sugerem que ela seja real



DEBATE COM ANGELA ALBINO

Reproduzo a seguir a maior parte do debate que tive com Angela Albino, deputada pelo PC do B, que já foi candidata a prefeita e provavelmente será de novo. Ela aceitou uma provocação minha e veio a campo defender seus pontos de vista. Admirável! Se todos as pessoas que fazem política fossem assim. No entusiasmo, acabei falando mais do que minha gentil interlocutora, que interferiu com frases precisas, defendendo com brilhantismo seus pontos de vista, dentro dos limites de espaço do Twitter. Nossa conversa pode ser localizada nos perfis de @neiduclos e @angela_albino. Agrupei frases, editei para tornar mais claro o que ocorreu, já que a pulverização do twitter funciona on line, mas ao migrar para outra mídia, como é o caso deste jornal virtual, pode dificultar a leitura. Mas as opiniões estão aí.

NEI DUCLÓS - Capitalismo é exploração em função do lucro.Revolução é exploração em função do prejuízo.

ANGELA ALBINO
- Não há saída, então?

ND - Sim, o equlíbrio entre capital e trabalho. Foi tentado a partir dos anos 30 mas a barbárie destruiu a experiência. O equilibrio entre capital e trabalho gerou as leis trabalhistas e o estado social europeu. Essa solução política surgiu depois de 1917, quando os bolcheviques traíram a revolução democrática de fevereiro com um golpe. O grande inimigo hoje não é o capital, mas a indústria financeira, que é o capital especulativo podre, fake, anti-nação. A industria financeira descobriu que pode continuar imperando com a esquerda nos palácios. Tanto faz para ela. E não se trata de engessar o capital e sim despertar as forças sociais e econômicas por meio da busca do equilibrio social.

AA- Estou na reunião do Comitê Central e o eixo lógico é muito próximo dos teus argumentos, identificando no setor financeiro nosso maior desafio a ser enfrentado. Vivemos um tempo de trevas, diz Maria Conceição Tavares. Em 29, saída foi trabalhista e mais progressista. Lembra o dilema de Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie.

ND - Mas socialismo é uma palavra contaminada pela radicalização, que no fim desaguou neste governo pró-banqueiros. É preciso desmontar a fonte do poder, que é o dinheiro da tunga da indústria financeira, que compra e corrói tudo. A corrupção faz parte da lógica desse sistema. A ruptura deve ser pacífica por meio da lei e da intervenção anti-corrupção.Mas quem vai colocar o guizo no pescoço do gato?Não pode é desmoralizar a experiência do equilibrio entre capital e trabalho chamando de reformismo. Violência não é virtude.

AA- Aliás, revolução não é sinônimo de armas: acredito que devagar e sempre se muda de fato.

ND - Para o imaginário dos ditos revolucionários, é. Essa é a fonte das acusações tipo PIG e golpismo. Sempre as armas

AA - Muita gente, até bem intencionada, confunde tática e estratégia. Mas quem não olha o mundo todos os dias e deseja transformá-lo? A mudança de fato só ocorre qdo encontra eco no coração do povo. Pode ser súbita ou de longo prazo.

ND
- A mudança de fato pode ser súbita, desde que se tenha o foco claro. Só que o sol já vai alto e muita coisa se tentou e falou e o resultado é o pior possível. O povo tem claro o problema, sente na carne e enxerga, num processo dialético básico. O que precisa mudar é a política. A mudança real deve começar na linguagem, na percepção do problema, no desmonte do discurso gerado pela opressão.

Essa é a síntese da conversa, que teve interferência de duas pessoas, uma delas trazendo os tuits para o varejão da política local, que prefeiro não reproduzir, pois não essa era a intenção original da conversa. Conversamos de maneira macro e não caímos no ramerrão partidário. Agradeci a conversa com a brilhante deputada.

ND
- Obrigado, Angela. Fiquei muito feliz com nossa conversa. Me sinto prestigiado como cidadão.

AA - Eu é que agradeço o debate. Tenho cada vez mais o twitter como uma ferramenta desnudante e democrática por excelência.


RETORNO - Perfis no Twitter: @angela_albino Florianópolis, SC - Mané tripeira, mãe de Leonardo e Isaac e avó do Vicente. Acredito em amor, trabalho e poesia.http://www.vermelho.org.br/sc

@neiduclos Florianópolis, SC, Brasil. Poeta, escritor, jornalista. (Uruguaiana, RS, 1948) Formado em História pela USP. Católico. www.consciencia.org/neiduclos

NOIR



Nei Duclós


Pronuncia-se no ar. Não, Udo, não é rádio, é cinema. Noir se escreve com i, mas pronuncia-se a. É coisa dos franceses. Serve para batizar um tipo de filme americano. Sei lá porque os gringos não puseram filme nigga, talvez porque se usassem nigga teriam apanhado. Preferem usar palavra francesa, que é mais charmosa. Se tu disser, Udo, alemão batata, burrão, passe o alho em francês vai parecer uma coisa chic. Foi por isso que chamaram de noir naqueles filmes nos anos 30, 40 e 50, de detetive, tudo em preto e branco. É coisa de intelequêtual, sabe? Intelequêtual gosta de cuspir francês e pensar em inglês caipira. Eram filmes baratos, os caras faziam o que queriam. São Cult, como dizem. Muito apreciados. Por quê? Porque eram bem feitos, porra. Se tinha porrada? Tinha, mas não era filme de luta. Tinha tiro? Tinha, mas não era tiroteio. Eram dramas, intensos, entende? Claro que não entende, nasceste na roça, tens uns pés de pilão, mão de socá mio, como vais saber dessas coisas? Passe o conhaque, Udo, não domina a garrafa.

Soubeste do Nick, é, o Nicolau, aquele, lá da Dona Netti, assim com dois tês. Sabe que a Dona Netti se chamava Ambrosia? Quem deu o apelido, que pegou, foi o Nick. Ele era apaixonado por filme noir. Dizia que todos eram obras-primas. Vivia futucando arquivo morto para ver se encontrava alguma obra viva, que desse para projetar. É que ele tinha visto praticamente sozinho os filmes lá na adolescência dele. Como era um cara desse tamanho, fajutou uma carteira de estudante e entrava em sessão proibida para di menor. Sabia que ele queria fazer um festival desses filmes, quando tudo já tinha virado sucata? Ninguém sabia onde estavam. Nick achava que os filmes favoritos dele não cabiam em DVD. Tinha que ser no celulóide. Vê se pode.

Soube depois pelo Ricardo Videomarca, o publicitário que inventou esse sobrenome, que o Nick procurou a agência dele para promover o festival. Aí perguntaram: qual filme você já tem? Beijo da Morte? A Chave de Vidro? Alma torturada? Curva do Destino? Não tinha nenhum. Disse que tinha Scarface. Mas Scarface não é bem um noir, é filme de gangster, bem fajuto, gritaram para ele. Os caras da agências eram metidos, mesmo, viviam chupando reclame de revista estrangeira então sabiam. Nick ficou arrasado. Quase se matou. Sumiu de casa, deixando Dona Netti apavorada. Ela então foi até a polícia e contou para o inspetor Malden a história do filho louco e o detetive se condoeu.

Bem, Udo, tu que é metido a comedor sabe, se condoeu uma boa chonga. O cara queria meter na senhora desesperada. E deu uma busca em hotel barato. Encontrou o Nick com os canos furados de tanto se picar. Estava entregue, o desgraçado. Só porque não sabia o que achava saber mais do que os outros. Como o Malden estava a fim da mãe do cara, deu uma força. Freqüentou a casa, conseguiu um emprego temporário de escrivão numa delegacia bem afastada. Nem podia fazer aquilo, precisava de concurso, mas quem ia saber? Estava tudo em casa. Aí o Nick se revelou. Virou inspetor. Dava carteiraço. Mas nunca desistiu do seu festival de filme Noir.

Ele começou a bisbilhotar em jornal e montou uma rede alcagüetes que vinham lhe dizer onde tinha um acervo de filmes velhos, em cinemas que iam ser demolidos, em empresas falidas etc. Ia lá e arrebanhava tudo. Como os troços estavam em petição de miséria, contratou um véio especialista em laboratório, que foi recuperando o que podia. Como o Nick era como tu, Udo, um ignorantaço, foi aceitando tudo o que velho dizia. E o que velho dizia era o seguinte: veja isso, consegui fazer o serviço completo nesse filme. Era mentira. O véio só juntava uns pedaços de filmes aqui e ali e os rolos mostravam histórias sem pé nem cabeça. Como era tudo muito parecido, Nick foi engolindo.

Quando viu que tinha um monte daqueles filmes recuperados, alugou uma sala de cinema antiga, que estava numa pendenga judicial por causa de umas heranças. Conseguiu tudo na marra: a sala, o projetor, a segurança do local, tudo. E foi até a agência de publicidade, aquela que tinha esnobado ele, armado. Foi lá e obrigou os caras a fazerem um cartaz divulgando o festival. Exigiu também, já que ele era meganha, que colocassem notas na imprensa. E na noite da estréia do festival ficou esperando. Mas era muito longe a tal sala e ninguém queria mais saber de filme noir, velho, com gente de chapéu e cara feia, sendo preso, algemado, se vingando ou falando aqueles diálogos inventados pelos escritores policiais que ficaram ricos criando frases.

Só quem apareceu lá foi a Verônica Leite, lembra daquela loura gostosa? Já estava meio gorda, mas gostava de cantar e fazer mágicas. Nick ficou encantado com ela. Mostrou seus conhecimentos. Passou um filme, na sala vazia, só eles dois. A mulher estranhou que o assassino era descoberto logo no início. Começava como uma mulher dando tiro no outro. Mas isso não seria no final? perguntou ela e Nick rosnou. Mas se entenderam. Naquela semana do festival, viram todos, um por dia. Nick até deixou de ir à delegacia. O delegado então ficou uma fera e mandou ele embora.

Nick não se importou. Tinha a loura, tinha os filmes, tinha a sala. Tinha. Porque em seguida veio uma ordem e demoliram o cinema. Nick ficou na rua, abraçado aos rolos, com uma loura puta de companheira, que dormia o dia todo. É para tu ver, Udo, como são as coisas. Nick estava duro e tentou vender o festival dele. Bateu em tudo que é porta. Teve gente que quis ver. Caíram na gargalhada. Allan Ladd não é o promotor, é o matador, diziam. E Nick teve mais uma prova de sua imbecilidade, seu desconhecimento.

Pois tu sabe dele, Udo? Sabe do Nick? Pois mataram o cara? Hein? Tu já sabia? E eu aqui gastando meu latim. Quem? Tu o quê? E desde quando deste para isso, Udo? Porque a Verônica Leite era tua? É isso, Udo? Mataste de ciúme? Ah, teu investimento, teu ganha pão. O cara era uma ameaça. Porra, Udo, retiro o que eu disse sobre ti. Tu é um cara porreta, mesmo. Bem, estou indo. Me alcança…deixa que eu pego meu chapéu. Não, Udo, não faça isso, eu não vou contar para ninguém…juro! Udo, nãããão!!!

16 de setembro de 2011

TOURO


Nei Duclós


Não meço meu amor por latifúndio
nem meu estro por verso alexandrino
sou do passado, quando havia adubo
para o beijo parido no deserto

Sim, é soneto a minha voz a prumo
gosto do molde de material bruto
crivado de pepitas e do esturro
da fera que me habita e faz barulho

Não me diga o que devo ter escrito
porque na hora em que parti no escuro
ninguém me dava armadura e montaria

Cavaleiro, galante como um touro
invisto nos saraus que descortinam
meu assombro cruzado pelo esporro


RETORNO - Imagem desta edição: Tourada, de Picasso.

PREVISÃO DO TEMPO



Nei Duclós


Quebrou-se o vidro do exaustor
e a dor sobrou para todo lado
do teu sol, quadro pendurado
como flor artificial no alto teto
do amor posto em pressão

Tufão que devasta teu calor
reservado no serão que o som
da palavra apronta no segredo,
vilão do nosso sonho, guardião
de um futuro ainda implume

Surra de emoção que te desgarra
nos confins de um leste bruto
e eu, crepúsculo a anunciar a noite
em que estaremos juntos, sobro
como o dia no ângelus mortiço

Antro de comunhão sem data
para acontecer a pleno, como vela
solta no convés em dia de feriado
em que a tripulação deixou o cais
e varre a lonjura dos pomares

Pomo de confusão colhida no sítio
onde devíamos repousar, em vão
porque somos só conflito
na carne de gozo prometido
Cama que tarda, mas está escrita



RETORNO - Imagem desta edição: magnífica foto do fotógrafo maior da fronteira, Anderson Petroceli, que tirei daqui, o blog que tem link permanente aqui ao lado do Diário da Fonte.

15 de setembro de 2011

WIM WENDERS: O VÔO DO FLÂNEUR


Nei Duclós

Os anjos de Asas do Desejo (e sua seqüência, Tão longe, tão perto), de Wim Wenders, são uma radicalização da figura do flâneur, encarnado por Baudelaire: o cara que andava pelo avesso da cidade transformada subitamente pelas forças do capital, que entregava-se à contemplação e à reflexão nas largas avenidas que brotaram junto com os edifícios e as multidões. Há um componente nostálgico nesse personagem notório da História da Cultura, que teria resgatado, em plena metrópole, o modo de viver do campo, inconformado com a avassaladora presença das máquinas e a desumanização dos habitantes. Os anjos de Wenders, testemunhas da pequenez e da imensidão das criaturas que contemplam, expressam-se, como Baudelaire, pelo poético (a nostalgia da linguagem antes da demolição mercantil do discurso) e mapeiam as situações que envolvem os seres que estão sob os seus cuidados.

CHANCE – Mas se o flâneur histórico (inaugurador da modernidade) é ruptura diante do capitalismo nascente, e uma tentativa de resgate da harmonia perdida, os anjos da pós-modernidade são o sofrido olhar diante da decadência urbana, desse desmaio abissal que é Berlim reconduzida à unidade depois da guerra que a cortou ao meio. Há necessidade agora de o flaneur interferir na cena que observa, sob pena de tornar-se o árido espírito que gerou o abismo. Os anjos então se humanizam, e vertem sangue para aproveitar a chance: agora que o sistema dá sinais de cansaço, é hora de pousar nele o que há de mais profundo, a materialização do sonho cevado na exclusão secular.

ABANDONO – Outro flâneur de Wim Wenders é o personagem mudo desse filme que foi feito para nos derrubar, o incomparável Paris, Texas. Ele vaga pelo deserto em busca do amor perdido. Voltou enfim ao campo e nele procura encontrar o que não possuía mais na cidade. Guia-se por um paradoxo: um nome feliz de cidade encravada no grotão da América. Vaga sem nenhuma chance de encontrar o que procura e é por isso que há aquele blues tocado pela guitarra feita com os nossos nervos. A guitarra chora a impossibilidade e temos certeza que ali, naqueles momentos antológicos do cinema maior, nunca fomos tão sós. O abismo dessa figura é o horizonte sem fim que se distancia a cada passo.É no fundo o ser que perdeu a capacidade de se expressar (porque há um abismo entre o homem e o esquema que deveria sustentá-lo) e que sai em busca da palavra perdida. Encontra-a corrompida, exposta na vitrina do mercado. Mas ele procura recuperar a fala (a sua vida) e é com a palavra prostituída que precisa recompor-se.

Essa é uma das fábulas desse artista que nos comove pela compaixão (esses ausentes desesperados que despencam na paisagem) , que nos convoca pelo sussurro (esse poema que ninguém escuta), que nos leva até a amurada e lá nos aponta o chão distante, para o­nde irá nosso corpo sem sentido.Lançamos, então, tudo o que somos, no ar, para ter certeza se ainda contamos com alguma densidade. Vamos ao encontro de nós mesmos. Deixaremos, com Wim Wenders, de sermos o flaneur conformado com o olhar infinito. Se tivermos sorte, haverá sangue quando acordarmos no chão da cidade condenada.



RETORNO - Republico texto já divulgado aqui em 2005

JACK O MARUJO E O PAPAGAIO



Nei Duclós

Não bastasse o capitão, agora tem um pior do que ele: o papagaio. A estréia de mais um boquirroto a bordo do barco causou estrago entre corsários e sereias. Jack o Marujo reagiu. E abordou outros assuntos também. O pior mesmo foi ter pesadelos com um certo pirata, o famigerado Long John Silver (na foto acima). A seguir, nova seleta. O capitão não pára de soprar coisas. Quer que o livro dele fique pronto logo, deve ser isso. Depois ele se manda pro alto mar.

“Por que o sr. anota tudo o que eu falo?” perguntou Jack o Marujo. Para ter o que ler depois, respondi. “Vamos lançar um livro com suas respostas”, falou o editor. Trate ele bem. Se houver encalhe te passo na adaga, disse Jack o Marujo. Ou seja: Quero ver todo mundo na fila no lançamento do livro de Jack o Marujo! Senão vão ocupar lugar na prancha!


LOURO NO CONVÉS


Agora chega de trabalhar, disse Jack o Marujo. Preciso entornar um tonel de rum. Demorou, disse o papagaio

Mas aonde o sr. arranjou essa peça? perguntou o Imediato apontando para o papagaio Ele veio amarrado a uma sereia, disse Jack o Marujo.

O capitão é uma pessoa correta, disse o papagaio para o Almirante. Ele prometeu suborná-lo logo que o sr. chegasse

O sr. gosta de ser Jack o Marujo? perguntou a repórter. Gosta, mas agora ele conseguiu um ghost-writer, disse o papagaio

Vou fazer a distribuição de sereias, disse o papagaio para os corsários. Metade para mim, metade para vocês

Depois que o papagaio se aboletou no barco não tivemos mais sossego, disse um corsário.Verdade, disse outro. Ele vive cantando Justin Bieber

O capitão mandou vocês se jogarem aqui,disse o papagaio. Mas nós vamos morrer! disseram os corsários.Não terão tanta sorte, disse o papagaio

Aqui é o papagaio, disse o papagaio. Jack o Marujo diz que não vai. Mas eu posso fazer o mesmo pela metade do preço

Bebeste todo meu rum? perguntou Jack o Marujo. Estava saudoso das Canárias, disse o papagaio

30 quilos de amendoim? O sr. está traficando aves silvestres? perguntou o bodegueiro.Não, é o papagaio,explicou Jack o Marujo.Festeja demais

Pararam de trucidar inimigos por quêêê? berrou Jack o Marujo. Horário de almoço, responderam os corsários

O papagaio colocou fotos suas na internet, disse o assessor. Maldito! Bem que notei seu silêncio quando atendi a sereia, disse Jack o Marujo

Nosso capitão é batuta, diz o papagaio no microfone da rádio. Ele está procurando uma rima, diz Jack o Marujo tocando a garrucha

O papagaio partiu. Disse que foi sentar praça, disse o Grumete. Maldito! E saiu sem varrer o convés, disse Jack o Marujo

Que fim deu o papagaio?perguntou o encarregado.Fritei para a sereia comer, disse Jack o Marujo.Ele mentiu que era eu para o Jornal do Almoço

Por que mataste o papagaio? Era um baita personagem, disse para Jack o Marujo. Ele escapou, disse o capitão. Fugiu para o tombadilho


OMBRO, ARMAS!

Recebi uma carta do Imperador, disse Jack o Marujo para o guaipeca do cais. Ele sente saudades dos javalis que comia na mata

Vimos convidar o sr. para uma palestra, disse o oficial. Aceito, disse Jack o Marujo. Gosto de falar com recrutas: Ombro, armas! Alto

Vamos fazer um show a bordo, precisamos do barco,disse o líder da banda.Tá, disse Jack o Marujo.Vou chamar os tubarões pra fila do gargarejo

O sr. tem alguma coisa para as vítimas da corrupção?perguntou a voluntária. Só um monte de propaganda da eleição passada,disse Jack o Marujo

Por que os piratas usam tapa-olho? perguntou o bibliotecário. Para facilitar o uso da luneta, disse Jack o Marujo

O sr. já encontrou algum tesouro, capitão? perguntou o aventureiro. Já, respondeu Jack o Marujo. Mas o fisco levou

Tem pôneis malditos no motor do seu barco, capitão? perguntou o garoto. Tinha, respondeu Jack o Marujo. Usei como isca

Vou abrir licitação para vaga de sereia, disse Jack o Marujo. Você não, Flipper!

O sr. já afundou muitos navios? perguntou o curioso. Muitos. Mas consegui escapar com vida de todos eles, disse Jack o Marujo

Mas isso é bula de remédio! gritou Jack o Marujo. Não me enganas, capitão, disse Long John Silver. Isso aqui é charada que indica o ouro

Confesse onde está o tesouro, biltre! disse Long John Silver. Não devia ler livros de pirata, acabo tendo pesadelo, gritou Jack o Marujo

Trouxe um livro de piratas para o sr. ler, é um clássico, disse o universitário. Joga isso para os tubarões, disse Jack o Marujo

O sr vê filme de pirata? perguntou a promoter. Sereia não gosta de pipoca, disse Jack o Marujo


FUNDO DO AMOR À SEREIA

Quando você vai voltar, amor? sussurrou a sereia. Avisa o fiscal que não volto mais porque fiquei surdo, disse Jack o Marujo para o Grumete

O sr. tem muitos filhos? perguntou a assistente social. Cardumes, respondeu Jack o Marujo

Sereia depende de sua fé,disse o capitão. Mas EXISTEM? insistiu o menino. Não solte escamas no convés que sua mãe não deixa,disse Jack o Marujo

Qual o tamanho do maior peixe que o Sr. pegou? perguntou o menino. Está vendo aquela montanha lá? disse Jack o Marujo

O Sr. chegou a ver Deus? perguntou a crente. Não me animei, disse Jack o Marujo. Ele até me convidou...

Tenho um encargo para o sr., disse o chefão. Preciso sumir com uns políticos. Anuncie no jornal que fazem de graça, respondeu Jack o Marujo

Qual sua nacionalidade? perguntou o patriota. Nasci a bordo. Fui registrado numa ilha que o mar engoliu. Sou de Netuno, disse Jack o Marujo

E o que fazemos com os poemas? perguntou o combatente depois da batalha. Solte tudo no pasto que eles encontrarão pouso, disse Jack o Marujo

O sr. é muito superficial, disse a doutoranda. Precisa amarrar melhor suas teorias. Aprendi com os naufrágios, disse Jack o Marujo

Vou me retirar para uma ilha e escrever o livro da minha geração, disse o sonhador. Não esquece de levar a mamãe, disse Jack o Marujo

Queremos comprar seu voto para nosso candidato, disse o político. Vendo, disse Jack o Marujo. Deposite no Fundo do Amor à Sereia


RETORNO – Jack, o Marujo é o meu herói.(Pedro Machado). Eita... que gostaria de navegar nos mesmos mares que o Jack o Marujo!! (Kassiana Rinaldy ). Adoro jack o marujo e suas peripécias (Marney Coringa Rocha)

14 de setembro de 2011

VÉSPERA DE PÁSSARA


Nei Duclós

Começou o meu exílio
teu silêncio sem aviso
lei que define o limbo
cadeira no fim da fila

Faz o oposto do que digo
faz por gosto, faz por birra
me condena a ver navios
Some quando mais preciso

Gosto de tudo em ti.
Até do que não me liga:
o ciúme exigindo juras
o truque da teimosia

pandorga que esvoaça
gruda surda na marina
atirada como caça
da cabeça para cima

Véspera de pássara
esfinge, Luaça
álibi de vertigem
terraço de um enigma