7 de setembro de 2011

JOHN HUSTON: A MALDADE E SEU AVESSO, A CORAGEM


Nei Duclós
O homem é a sua obra. John Huston não era um bom sujeito, mas isso não significa que fosse um cara ruim. Era malvado, impiedoso, o que é outra coisa. Era aquilo que Clint Eastwood retratou no filme à clef “Caçador Branco Coração Escuro”: alguém capaz de colocar um projeto caro em risco só para satisfazer um capricho, assassinar um rinoceronte (o que provocou a morte de um africano). Como diretor, roteirista ou ator, ele sempre se dedicou à crueldade, não para assumi-la, como faz a besta do Quentin Tarantino, ou para transformá-la em espetáculo, como fazia o brilhante Sam Peckimpach, ou curti-la como um ritual como o Roman Polanski dos primeiros filmes, mas para denunciá-la.

Isso o coloca não no entretenimento, mas na literatura, ou seja, na narrativa que procura mostrar o que há de verdadeiramente humano num mundo em ruínas, para assim poder enxergar com mais clareza. É um dissecador de cadáveres viciado no ofício. Um olho clínico sobre o foco do tumor. Portanto, não podemos cair na tentação de colocá-lo como um humanista. Seu rosto de pedra, seu coração seco e seus lábios úmidos (que proferiam barbaridades ditas em tom de blague) não deixam. Sua denúncia não parte de um coração puro horrorizado com a malvadeza. Ao contrário, faz parte dela, é sua irmã gêmea. O fato de estar de lado de fora do balcão para fazer cinema o salvou da danação eterna. Não que tenha alcançado o paraíso, mas porque crestou a alma o suficiente para não entregá-la de mão beijada para o fogo eterno.

O horroroso personagem de Chinatown, de Polanski, um empreiteiro que rifa a filha para faturar com a escassa água de Los Angeles; o diretor de O Tesouro de Sierra Maestra sobre o panaca que perde o tesouro não só por ambição, mas por incompetência; Huston era sempre capaz de mostrar a maldade para despertar o seu avesso, a coragem. No caso do cinema, a coragem de ver. Por isso colocava os bibelôs de Hollywood, como Clark Gable e Marilyn Monroe, num rodeio de horrores no deserto em Os Desajustados, para sugerir que na indústria do espetáculo os mitos eram sua principal vítima e não seus deuses. Só isso já faz de Huston um criador radical e transformador, que apostou alto na sua lucidez para driblar uma malvadeza muito maior, o da manipulação de consciências das massas para colocá-las a serviço da podridão do poder.

Ele sabia que sua destinação era o agradecimento de seus pares e dos espectadores. Dos outros cineastas, porque abria caminho para a criação verdadeira, longe dos lugares comuns impostos pela mediocridade. E do público porque deu a ele a sinceridade necessária para enfrentarmos esse mundo hostil. Pois é só colocando a cara na frente do horror é que poderemos sair com algum ganho, sem sucumbir por nossa própria incompetência, fruto do nosso olhar viciado e ilusões perdidas. Ao saber de sua contribuição, Huston exibia aquela ar debochado dos grandes realizadores, os que tem plena noção do espaço que ocupam na História.

No mais cruel filme de Box de todos os tempos, Fat City (1972), Huston coloca um decadente Stacey Keach ao lado de um promissor garoto, Jeff Bridges (ambos na foto acima) para mostrar o que pega na América de verdade: os guetos étnicos, mortais; a impossibilidade de ascensão social; a queda em todos os detalhes da vida social; o fechamento absoluto das portas de qualquer perspectiva de felicidade. Ao mesmo tempo, é possível ver, na performance admirável de Susan Tyrrell, indicada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante, que as criaturas que nada possuem e estão enredadas numa espiral de frustrações, têm mais grandeza e dignidade do que os que estão por cima e são considerados os protagonistas.

Nesses cacos do mundo, Huston mostra o último reduto do humano: um gesto qualquer de solidariedade, mesmo que seja a retribuição de um favor. Lado a lado num banco de bar, os dois pugilistas, um em decadência e o outro em ascensão, dividem o mesmo espaço do olhar malvado do cineasta que os criou. Por isso ficamos putos o tempo todo vendo esse filme que nos incomoda e acabamos sucumbindo a ele ao fazermos o balanço no final.

É quando nos rendemos a John Huston, o cara que teve a coragem de dizer na nossa cara tudo o que vale a pena saber, com a maestria dos talentos insubstituíveis.

Nenhum comentário:

Postar um comentário