14 de maio de 2012

LEGADO: DESMONTAR O VAZIO


Nei Duclós

O que deixaremos de herança? Nada que possamos levar. Para quem parte, patrimônio ou nome vale tanto quanto o vento. Não que tudo seja inútil, e sim que tudo se equivale, tem o mesmo peso. Sendo assim, prefiro escolher o que parece bizarro ou inalcançável, mas é um sonho. Quero deixar como legado, para usufruto de contemporâneos ou futuros, uma forma de ficar habitado nos momentos de vazio. Considero uma arte o exercício de tirar leite, o espírito habitado,  dessa pedra , o tempo em queda livre para o Nada.

Cada pessoa tem seus segredos para fazer isso acontecer. O que serve para um não serve para o resto. Essa dificuldade é que me atrai para a pulsação de um diamante no cosmo escuro. Como fui treinado na desdramatização brechtiana no Arena de Porto Alegre, como o pouco que aprendi de interpretação foi um livro de Eugênio Kusnet, como o pouco que sei veio de alguns ensaios de Barthes e Foucault, como a viagem literária que fiz começa em Monteiro Lobato e passa por Conrad e Lorca, como tenho um acervo pequeno para tão grande pretensão, posso dizer que não são as leituras ou  a imaginação que preenchem o vazio.

Devemos procurar a essência, o núcleo do sopro que reacende a brasa. Ele é uma criatura livre de toda influência. O vazio cede quando você descobre o mecanismo e consegue desmontá-lo. E o vazio é gerado pelo mau uso das inúmeras linguagens que nos cercam, pelas ruínas do discurso, que inclui desde o milionésimo anúncio de cerveja até a pentelhésima vez que você ouve falar em democracia ou qualidade.

O vazio é fruto da linguagem em ruínas. E não basta ler grandes obras ou tentar criar romances espetaculares ou poemas inesquecíveis. Você precisa aprender a se distanciar, extirpar de dentro de si o que é implantado diariamente, não apenas pelo som das vozes e as luzes dos sinais, mas pelos gestos repetidos e que te formatam. As falas do Mesmo, que circulam nas almas possuídas pelo vazio, derrubam as pessoas por terra e só sabendo como elas exercem essa tirania é que poderemos nos livrar delas. Precisamos deixar de escutá-las, apagá-las na mente por meio da mais poderosa força da expressão humana: a capacidade que temos de gerar uma linguagem de poder, o poder que nos acompanha e impregna.

Dizem que Tom Jobim, gênio absoluto e maestro soberano, só falava traquinagens e passarinhagens nas suas conversas. Habitadíssimo como criador, e muito crítico em relação aos desmandos em geral, na intimidade ele simplesmente não assumia o discurso ambiente da economia, política, publicidade, culturas em geral. Ele falava de passarinhos. Nas redações,rolávamos de rir com as asneiras que falávamos e no dia seguinte lá estava aquela edição maravilhosa, seríssima. Pois soubemos desmontar o vazio por meio da nossa criação suprema, a linguagem habitada que é resultado da liberdade de pensar e agir

É a capacidade de se expressar sem freio, costurando o incosturável e defendendo teses impossíveis. Só assim tornaremos habitável o coração outrora vazio do tempo. Essa arte é o que eu gostaria de deixar como legado. Criar um contraponto permanente ao domínio. Sem fórmulas, apenas a força da intenção de fazer acontecer.


RETORNO – 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: “Estrelas sobre Innsbruck“,foto premiada do austríaco Norbert Span na .3º edição do Concurso Internacional de Fotografias da Terra e do Céu.