24 de maio de 2012

MARES DA CHINA: ESTRELAS E ESCRITORES


Nei Duclós

Vejo Mares da China de 1935, dirigido por Tay Garnett, com Jean Harlow e Clark Gable: oito roteiristas trabalharam um romance.O macartismo expulsou os escritores de Hollywood a partir dos anos 50. O resultado é o que vemos hoje, quando preenchem o vazio narrativo com clipezinhos.  Em Mares da China, dois roteiristas iniciais não deram conta do recado. Dois veteranos se encarregaram da tarefa. Mais quatro autores dividiram o trabalho. Só podia dar certo.

O filme foi um sucesso e Jean Harlow, magnífica em sua performance de mulher fácil que se apaixona pelo capitão do navio, foi capa da Time, privilégio a que poucas atrizes tiveram em toda a história da revista. Harlow nos foi vendida como mulher fatal que representava o luxo e o tal “glamour” (palavra que eu detesto, de tão mal usada). Era bonita, mas nem tinha a beleza arrasa-quarteirão de Marylin ou Liz Taylor. Mas em talento, sobrava. Neste filme, dá um show, principalmente na cena em que confessa o crime que cometeu por não conseguir escapar do sentimento que a arrebatava. Fantástica!

Leio num livro reproduzido pelo Google Books que Harlow queixava-se da manipulação sexual da sua imagem. “É preciso um vestido sempre mais curto para acontecer alguma coisa”, dizia. Em Mares da China, está totalmente vestida o tempo inteiro. E faz uma personagem sexy ao extremo, amorosa e determinada.

Uma das participações hilárias – entre muitos personagens -  é da atriz Hattie McDaniel (que não foi citada nos créditos) e que mais tarde, em 1939, fez História ganhando um Oscar ao interpretar a Mammy de Scarlett O´Hara de E O vento levou. “Comprei um patuá para me proteger”, diz ela para Harlow, que desejou sorte com as roupas que lhe presenteava.  “Quando fizerem mal à senhora, não me atingirão”. Ou, dizendo para a ex-patroa que ia ser julgada de um crime: “A senhora foi tão boa comigo. Mesmo que lhe enforquem ficarei agradecida. “   

O autor do livro é Crosbie Garstin, um veterano da Primeira Guerra que sumiu em 1930 quando remava na praia inglesa Salcombe Harbour. No original, o capitão se apaixona por uma chinesa e a engravida. Claro que Hollywood mudou essa história. Aliás mudou muito. O roteiro foi entregue inicialmente para dois escritores que deixaram o pessoal mais experiente horrorizados, pois mudava completamente a história original e ainda copiava coisa de Mark Twain e Somerset Maugham. O trabalho foi dado a dois experientes roteiristas, Jules Furthman e John Lee Mahin  .

Mas o embrulho era tão grande que contrataram Paul Hervey Fox para os diálogos e até Paul Bern, executivo da Metro e futuro marido de Harlow, deu pitacos. Bern se suicidou um tempo depois, num caso escandaloso que tomou conta dos jornalistas até os anos 60, pois desconfia-se que não foi suicídio.

O grupo de personagens coadjuvantes é demais: o covarde que procura uma segunda chance, o escritor bêbado que cria uma pegadinha por frase nos pobres interlocutores, a viúva que também caça o capitão, o bandidão que chama os piratas para saquear um carregamento de ouro no navio, o jovem oficial atrapalhado que tropeça a três por quatro, os passageiros chineses correndo perigo no tufão etc.

Quanta coisa por trás de uma simples sessão da tarde num canal alternativo universitário! Drama e comédia em doses certas, com diálogos mortais. O rigor sendo atravessado pelo humor, o amor fazendo escândalo, a traição gerando o caos, a tempestade desencadeando uma coreografia de pânico etc.