7 de junho de 2012

AVENTURAS DE UM OUTRO EU


Nei Duclós

Sou um mal agradecido da memória. Jamais lembro o que algumas pessoas juram que eu vivi. Tenho notado que emito um duplo que fica fazendo estripulias por aí. “O senhor gostou de vir aqui hoje”, me disse ontem a caixa de um mercado. Não vim aqui hoje, falei, já que tinha acabado de levantar para ir comprar pão. “Ah, então eu confundi”, disse ela, sem muita convicção. Fui durante anos convidado a contar minhas impressões sobre acontecimentos memoráveis como a Rádio Continental de Porto Alegre, que eu jamais escutei e onde nunca trabalhei, ou o bar Ocidente, que não lembro de ter frequentado. Custei a convencer que nada tinha a ver com isso. Mas até hoje desconfiam e de vez em quando renovam o convite para eu dar meu depoimento para livros que saem sobre esses assuntos candentes da vida boêmia da capital gaúcha.

Até hoje minha mulher lembra rindo que, antes de me conhecer, diziam que eu era tão bruto que “comia com as mãos”. Criado em casa de rígidos costumes, onde a hora da mesa era sagrada e monitorada pelo olhar fuzil do pai, e estava proibido de chegar despenteado ou sem camisa e onde o uso de talheres era ensinado antes dos quatro anos de idade, ficava estranho ter de aturar semelhante fama. Mas pode-se dizer que isso fazia parte do folclore de alguém que se posicionou publicamente como poeta. Só que é algo mais profundo. É um outro eu, mesmo, que vive uma vida que desconheço.

Tive prova disso recentemente Meu velho colega da revista Senhor dos anos 1980, Mario Chimanovich, me adicionou no Facebook e falou que iríamos resgatar memórias. E desfiou histórias sobre nossos ex-companheiros, pessoas dos quais nunca ouvira falar. Reclamei dizendo que desconhecia as personalidades, ao que ele reagiu reclamando da minha amnésia, dando detalhes impressionantes. Jurou que trabalhamos juntos na sucursal do Jornal do Brasil em São Paulo, lugar onde nunca estive, e que eu um dia cheguei bêbado e mijei no tapete! Falou que meu melhor amigo na redação era um jornalista paraense que depois voltou para O Liberal, de Belém.

Também é compreensível que eu possa ter esquecido, já que migrei muito de redação, emnbora tenha me comportado muito nelas, senão estaria queimado de cara e jamais ficaria, como fiquei, 27 anos no miolo do furacão do jornalismo paulistano, o mais rigoroso e exigente do país. Migrei também de natureza de ofício, saindo da imprensa para assessorias, dos jornais diários para as semanais, das semanais para as corporativas, das décadas de redações para alguns meses de publicidade,abordando negócios e literatura, pesca e indústria de base, empresários e escritores, executivos e estrelas da música e do teatro. Esse vai e vem frenético deve ter me confundido as lembranças ou então disseminei vários eus pela vida afora, gerando criaturas bizarras de mim mesmo, como acontecia nas velhas histórias em quadrinhos.

Lembro agora que certa vez uma pessoa sentou ao meu lado no ônibus e me perguntou se eu não era de Goiânia. Nunca fui na bela cidade, mas hoje tenho alguns amigos por lá. Luana, Euler, Carlos são pessoas do jornalismo e da universidade que compartilham comigo tanto os posts nas mídias sociais quanto os espaços da imprensa de Goiás. Talvez tenha sido uma confusão premonitória: a pessoa que me via em Goiânia já nos anos 70 talvez soubesse sem querer que eu estaria presente na cidade sem nunca ter ido lá. Ou talvez seja mais uma estripulia de meu outro eu.

Para quem achar que este artigo está muito autocentrado, posso garantir que está sim, mas bota isso no plural. Estamos muito autocentrados, eu e o outro que insiste em viver em um mundo paralelo e jamais me conta como foi.

RETORNO -  Imagem desta edição: magnífico Bic de Pena em Costa de Lauda de Paulo Caruso num flagrante da revista Senhor dos anos 1980.