9 de junho de 2012

CENÁRIO É PERSONAGEM


Nei Duclós

Filmes não focam países, mas cenários que fingem ser países, ou melhor, aos quais são atribuídos a identidades nacionais ou geográficas. Cenário também é personagem.  Por isso uma paisagem espanhola se passa por deserto do Oriente Médio em algumas cenas de  Lawrence da Arabia, de David Lean, de 1962. Mesmo quando há superposição explícita – o neo realismo filma a Itália do pós guerra por exemplo –  , existe apenas cinema e não sociologia. O neo realismo não é sobre a Italia do pós guerra, é sobre o cinema que focou ruinas urbanas, humanas e rurais com uma luz branca estourada, carne raspando em pedra, choros e gritos de criaturas barbudas ou em vestidos em trapos.

Vejo A Trapaça, de Fellini, de 1955, que foi acompanhado, numa sessão de TV, por análises com elementos sociológicos e históricos, como Vaticano, miséria, Italia etc. Mas o filme é sobre cinema, como todos. Ninguém de sã consciência acha, por exemplo, que os figurantes que vestem elmos com penachos sejam romanos da época de Cristo. Eles são figurantes que vestem elmos com penachos.  Essa é a permanência de uma obra da Sétima Arte: o de ser apenas cinema, mesmo que se apresente como metáfora. A linguagem audiovisual não deixa margem para dúvida. É de luz, sombra, cor, som e forma que se trata e não de Europa ou décadas passadas.

Em A Trapaça, o vigarista vai ao cinema com a filha adolescente e é desmascarado por suas vítimas, que o levam para a polícia. Na sala escura, vê-se apenas os rostos dos espectadores e ouve-se o ruído do filme. É o ambiente ideal para Fellini mostrar que está tratando de cinema. O vilão tenta negociar sua libertação no canto da sala, mas é pressionado pelos espectadores, que não querem ouvir a briga e sim assistir o filme. Não interessa seu semelhante nem o drama que ele vive, o que interessa é o que está passando na tela. Esse é o recado explícito do gênio.

Barthes lia a franja dos personagens do filme Julio Cesar, de Joseph L. Mankiewicz, de 1953, como a marca da romanidade inventada por Hollywood. Graças a Barthes, sabemos que se trata apenas da franja dos personagens, e não do cabelo dos romanos,  e que a metáfora é de autoria da indústria, desmascarada pelo mestre do ensaio.  Em A Trapaça, o vigarista se veste de monsenhor e usa a batina para identificar seu papel falso na hora de dar o golpe nos camponeses, católicos fervorosos. Mais tarde, ao tirar a batina, tenta convencer os comparsas que não trouxe o dinheiro do golpe, pois o tinha devolvido num ataque súbito de consciência. Os bandidos não vão na conversa e arrancam o butim escondido na roupa e no sapato do espertalhão. Assim é o cinema: uma explícita superposição de personagens que se despem em cenários cinematográficos diante do público que acompanha o drama. E não um tratado de ciências humanas.

Para analisar a Sétima Arte, criei um tipo ideal no sentido weberiano, um padrão que serve para esclarecer por meio da aproximação ou distanciamento: Todo filme é sobre cinema. Ele serve para enxugar o ensaio de suas veleidades sociológicas e enxergar os filmes pelo que são verdadeiramente, um conjunto de pontos luminosos acompanhados de sons. Esses pontos captam elementos que são dispostos em inúmeros personagens, a começar pelo cenário.

Os americanos sabem disso. Certa vez perguntei para alguém que tinha vivido nos Estados Unidos se o filme que estávamos vendo se passava realmente em Seattle. Ele falou que a ação se desenvolvia aparentemente numa cidade só, mas as cenas foram feitas em várias outras, como se fossem uma só. Sabemos que as mãos de algumas atrizes são de atrizes especialistas em mãos e não das protagonistas. Essa montagem frankestein é o que faz da Sétima Arte uma atividade voltada para si mesma. Trabalha com ilusionismo, mas vemos os truques. Não engana ninguém, a não ser absortos e sérissimos scholars que tentam ver nos filmes o que lhes falta nas teorias.

É por isso que digo que não há pano de fundo nem reconstituição de época no cinema. O que chamam de pano de fundo é a superfície do filme, pois está posto, está na cara. Em E o Vento Levou, de Victor Fleming, de 1939, não é o sul dos Estados Unidos que aparece, mas a disposição de elementos do cenário em função de uma narrativa. Coincide com a identidade da região enfocada, mas não é. Não vemos a Guerra da Secessão e sim um filme com elementos que nos remetem à guerra da Secessão.  Não é a mesma coisa.   E O Vento Levou é sobre cinema, como todos os outros filmes. O céu incendiado do final com o juramento revanchista de Scarlet O´Hara de que jamais passaria fome outra vez é reproduzido muitas vezes em outros filmes em sinal de homenagem, como Cavalo de Guerra, de Steven Spielberg, de 2011. É filme citando filme. E não época sendo reproduzida.

O vestuário e a caracterização dos personagens, que obedecem às imposições do script, costumam mostrar furos que os cinéfilos adoram apontar. O relógio de pulso de um soldado da Antiguidade, por exemplo. Um avião que passa célere numa batalha medieval. É quando vemos o cinema expondo sua natureza mais clara e profunda: é um filme que estamos vendo e nada mais. Todos os figurantes que morrem em cena vão tomar um café logo depois de filmar.


RETORNO -  Imagem desta edição: cena de A Trapaça, de Fellini.