31 de março de 2013

MANOBRAS E PRIORIDADES



Nei Duclós

Ao seguir em linha reta, não avance como um homicida sobre quem está fazendo alguma manobra, como estacionar, cruzar o caminho ou dobrar a esquina.

Para evitar conflitos, aceite a negociação permanente no trânsito e lembre-se que tudo passa enquanto um acidente fica para sempre empatando sua vida.

Ao fazer uma gentileza, como dar vez a outro carro ou pedestre, quem vem de trás pode querer te ultrapassar e colher quem usufrui do seu gesto. Cuidado.

Não dê ré sem olhar a quem. Ré não é poder, é solicitação. É preciso que permitam tua ré. Não se imponha pois pode matar quem você não vê.

Quando se apressam em roubar tua vaga, não faça retaliações, como xingar ou estacionar trancando o intruso. Deixe passar. Há sempre um tiro de tocaia.

Se por acaso a pessoa estiver na contra mão aposte que ela precisa estar ali naquele segundo. Releve, não tente puni-la com teu espírito legislador draconiano.

Não despreze carros mal cuidados ou sujos ou que não são do ano. Pense que há gente dentro.

Ao sair ou entrar na sua garagem, não imponha seu carro trancando a via. Não és o rei da cocada preta para fazer isso.

Chegar é ceder. Distribua para os outros a razão que sobra em você.

Peça, jamais cobre. Agradeça, jamais faça cara de conheceu papudo.

Se estiver pedestre ou ciclista, não se impregne de todas as virtudes achando que dentro dos carros estão seu inimigos, por mais crimes de trânsito existam.

Se vir uma bicicleta ou alguém andando a pé, não se transforme num serial killer.

Guarde a macheza para quem te solicita entre quatro paredes. Serve para se sintonizar  com a delícia de outro gênero, não com o crime.


RETORNO -  Imagem desta edição: cena de Playtime, de Jacques Tati.

DESPERDÍCIO



Nei Duclós

És a letra onde encontro a melodia. Somos uma canção inesquecível.

Acertaste uma única profecia: a de que não te esqueceria, fosse qual fosse o tempo, em qualquer momento deste desperdício.

Chuva miúda sem fôlego. O clima da meia estação não se define. É como tu, flutuante musa.

Pensar em ti me excita. Quando te escuto, então, nem digo.

Tua poesia é como a Lua, admirada por quem não sabe que és minha.

Vives das palavras que te dei, geradas pelo amor sem freio. Hoje me parecem traições, mesmo tendo o teu brilho.

Tens outra vida, a que me exclui. Trazes dela alguns perfumes, de flores em fuga.

Ressuscito em ti aos domingos, quando te deixas abater por um pé de vento.

Falas por charadas, pitonisa. Não te decifro, por mais que estude os astros.

Fingi que dormia quando te foste. Imaginava que irias até a porta de saída para voltar correndo. Mas sumiste, assombro do meu sono.

Perdi a razão na briga. Não quero achá-la, perdão de delícia.

Profecia é a pressa que o próprio tempo tem de acontecer.

É o destino, eu disse, para convencê-la. Posso mudá-lo, disse ela, indiferente.

- Com tanto sucesso entre as mulheres, como você trabalho o assédio? perguntaram para a celebridade.
- Não trabalho, disse o superstar.
- Por que? Te apaixonaste? perguntou o repórter.
- Por uma idiota! gritou o mais querido.


 RETORNO - Imagem desgta edição: Elizabeth Banks no filme 72 Horas, de Paul Haggis, 2010.

SONHADORA



 Nei Duclós

Uma palavra só puxa o poema: sonhadora, a que me vê sem que me conheça

Havia luz depois do breu sugerido pela cortina. Eram teus projetos, arsenal de forças vestindo lantejoulas.

São minúsculos tendões tensionando fibras, essas palavras que deixas escapar sem que eu consiga captar o que de fato dizem.

Te fiz a corte, operária do sonho. Quebraste o trono com um virar de cabeça.

Fazes parte de mim como um coração que não tenho. E que fica ao lado do amor que escondo.

É pouco, eu sei. A noite alta economiza o verso. Burila cada sílaba como se fosse a última. Esconde o coração embaixo da cama.

Teu vestido curto e voz de quem está chegando no sarau repleto de olhares mendigos. Eu nem estava lá para compartilhar tua poesia de batismo

Estou perdido, por isso digo. Se ainda pertencesse ao mundo, exerceria meu direito de ficar mudo.

Digo venha porque espero o retorno. Meu espaço de ilha brinca de fabricar um barco para atingir tuas águas profundas.

Voltei porque estavas na vigilia. Cuidavas os voos a serem feitos na madrugada ainda crua.

Prudência, a simples poesia sem firula. A que te faz cativa dos sons que as palavras suam.

Tentamos subornar a dor com nossas virtudes. Caia, flor mais alta da paineira.

Não te estoco por excesso de dúvida. Não sei o que vai acontecer no minuto seguinte. Se a indiferença ou, de novo, a loucura.

Mergulha, flor flutuante. Arrisque a pétala onde a raiz se aninha.

Precisei ocupar o espaço que tua ausência abriu na estação enquanto fingias estar presente. Passei do verão ao inverno num piscar dos teus olhos.


RETORNO – Imagem desta edição: Pier Angeli.

30 de março de 2013

LETRA ENIGMA



Nei Duclós

Leitura fácil nos abandona no dia seguinte
A que dá trabalho fica fazendo parte da nossa vida
Lutar pela sílaba, letra enigma, frase que te aguarda  
Saltar com o puma do poema mordendo a isca

Enfrentar na arena o touro do sentido
Não desistir de enxergar a chama onde havia cinza
Compactuar com a autoria que todos evitam
És da vanguarda, aquela porção suicida da tropa,

a que se arrisca por vocação, prisioneira do compromisso
O verbo não veio a passeio, não é florista de rimas
É um conflito que te deixa impregnado de perguntas

Cubra o avanço rumo ao tiro certeiro
Voltarás dessa invasão com o corpo em tiras
Mas haverá brilho no rosto assustador de tão inteiro


RETORNO - Imagem desta edição: Diana Caçadora, obra de Gaston Casimir Saint-Pierre


29 de março de 2013

DIA COM LUA



Nei Duclós

A Lua cheia, de dia, é feita de vidro.
Quica no azul sem veladura prestes
a virar profundo. Bastaria tua tinta
ingênua como pintura de menina

Transparente, na altura permitida
borra a borda, insegura, como a luz
de fruta em natureza morta. Susto
quando acordo ainda no sereno

Surpresa no minuto inútil, assoma
com toda a maravilha possível
no despertar que busca o rumo

Nos diz o que sentir se sucumbimos
à rotina e precisamos de uma surra  
na oficina onde nasce a formosura


RETORNO – Imagem desta edição:  Anderson Petroceli.