30 de abril de 2013

PRAIA DA PALAVRA



Nei Duclós

Não me poupe de ti, pomba de outras paragens. Pouse na praia da palavra

Agora me diga: o que é mais importante: o dia que se fina em notícias de alarmes ou teus lábios trêmulos no definem o início de um novo tempo?

Ficas séria quando estás amante. É porque sabes que eu morro, mulher sem controle.

Bebo da fonte em tuas mãos de seda. Sorvo o sonho que escorre por tua perna.

Me dê a mão, como se fazia antigamente. Chutamos pedrinhas preciosas de canções brilhantes.

O beijo está ativo em todos os recantos. Te arrepio bem sabes aonde, mas nada demonstras, esfinge de doce mármore.

Meu poema reza no crepúsculo.

Sol, desço em teu horizonte.

Manipulas luz entre os arbustos.

Moro no coração que me dedicas. O que sofre por mim, à parte. Espécie de lua radiante.

Escrevo na areia. Riscas com o pé para fazer pirraça. Sou teu soneto, me dizes, cheia de graça.

Bato palmas e tu, pássara, se transforma em poeira. Grãos azuis no íntimo da princesa.

A tarde plana sem o motor da tua presença. És a possibilidade de avanço no plano de voo desenhado no teu corpo.

Basta um sopro para acender tua felicidade. É porque nasceste nesse limiar da vida plena de vontade.

Aguardas, soberana, que eu me desperdice. Depois me acolhe, aos pedaços, em suas asas de espuma.

Empurro o desamor montanha acima e antes de chegar no topo desisto. É quando meu coração rola de volta para ti, perdição de gruta.

Desmanchamos na doçura que me trazes com teu cheiro de chuva em mato fechado.

A solidão tem contornos conhecidos. Dois juntos são o planeta distante fora do mapa.

Olhos privilegiados selecionam a paisagem perfeita.

A terra imagina a água, irmã do céu. Horizonte é o vórtice do outono claro.

Desmancho teu cabelo tão caprichado que arrumaste na cachoeira. Sereia de água doce, bateia de ouro fino, volteio.

Um toque de leve e desencadeia-se a avalanche. Fechas os olhos quando fantasiamos.

 

29 de abril de 2013

PAULO VANZOLINI



Nei Duclós

A verdadeira solidão é a do morto
enfim absorto em si mesmo, corpo
sem movimento, olhar obscuro
opaco ser na barca de Caronte

Bichos estudam o rumo do banquete
percorrem da pele ao veio oculto
enquanto o homem exala o sopro
que lhe escapa a toda para sempre

Burocráticos necrológicos inventam
uma biografia aquém da grandeza
dorme a nação erma de seu gênio

Espíritos convergem para recebê-lo
cantam a obra prima, a rara precisão
Ao norte, órfã, grita de dor a Amazônia


LETRA É MELODIA EM PAULO VANZOLINI




Nei Duclós


Uma informação de Paulo Vanzolini (1924-2013) no documentário sobre sua obra musical, Um homem de moral (2009), de Ricardo Dias, é valiosa: a de que ele resolvia a melodia no momento em que resolvia a letra.  A palavra assim é protagonista na canção ao definir a linha melódica. Trata-se de um trabalho árduo, que Vanzolini fazia questão de ressaltar ao explicar porque sua obra era, em termos, escassa. Mas nem tanto: são 51 músicas, a maioria samba clássico, na linha tradicional mas tomado pelo seu avesso, ou seja, contrariando a imagem que se faz do seu imaginário. No lugar de uma boemia airosa ou simplesmente de dor de corno, uma boemia “clínica e com grandeza”, como diz num samba.

O que seria uma boemia clínica? Doentia no sentido médico, obsessiva (dor de amor “24 horas por dia, sessenta minutos por hora”), psiquiátrico. mas sem lamúria nem ostentação. Como um paciente que sofre de amor sem fazer alarde de sua condição de amante frustrado ou traído. A relação assim obedece ao que há de mais humano, por meio do conflito e não da generalização amorosa, romântica e piegas, tão comum na pagodagem de hoje. Amor em Vanzolini tira pedaço. Nasce torto, não deveria “nem ver a luz  do dia”, mas cumpre o destino e isso é o que torna o narrador do samba, gente e não uma caricatura.

Suas letras elaboradas até o máximo da sonoridade e da clareza abordam o conflito amoroso entre os desiguais. O paulista que se queixa da fuga da amada para a terra natal, o Ceará, a mulher que mata seu parceiro em Ronda, as mulatas que fazem doce para os pretendentes. Essa relação sobrevive aos trancos num país em guerra permanente, onde o punguista surrupia seus trocos na praça Clóvis e leva junto a memória da amante representada pelo seu retrato. Além da batalhas da guerra paraguaia e tantas outras cenas vivas que seu talento disseminou no país que perdeu a identidade.

No documentário Um homem de moral, que são os bastidores dos preparativos de um show em sua homenagem, a certa altura ele entra no estúdio onde só tem fera, grandes compositores, intérpretes e instrumentistas. Paulinho Nogueira faz blague e pergunta para ele: O que você está fazendo aqui? Ao que Vanzolini pega carona dizendo: Eu não tenho nada com issso, não tenho nada com isso. O grande compositor de escassos recursos vocais e que era zoólogo renomado, apaixonado pelo Brasil e a Amazônia, era um outsider da cena musical, um talismã da nossa sorte cada vez mais rala.

Foi uma brincadeira dos seus admiradores talentosos, que viam nele uma fonte de música brasileira de primeira grandeza, fiel ao país que o formou e gerou, e que a partir da marginalidade da cidadania encontro o núcleo do drama nacional, transformado em sambas inesquecíveis. Ele nos inspira a escrever sobre sua vida como se fosse um samba, caprichado na letra, fonte de sua arte . Não sou especialista em Paulo Vanzolini, nem em música popular nem em zoologia para compor um texto de adeus ao gênio que nos deixou aos 89 anos neste final de abril de 2013. Posso apenas fazer esse balanço de alguns cruzamentos da sua obra e presença na nossa vida culturalmente  miserável, onde escasseiam os grandes criadores.

Em outro documentário, No rio das amazonas (também de Ricardo Dias, 1996), que passou recentemente num canal de TV a Cabo, é tocante o amor que tem pela Amazônia e encantador o tom didático de sua narrativa, abrindo caminho na selva selvagem da nossa ignorância sobre o grande patrimônio natural abandonado. Doou sua biblioteca com 25 mil itens, avaliado em 300 mil dólares, para ao USP onde trabalhou a vida inteira. Foi-se o gênio, ficamos nós, órfãos de tanto talento.


28 de abril de 2013

DIURNA LUA CHEIA



Nei Duclós

Ah que linda lua na manhã de domingo
de cara para o Leste, bóia do infinito
lava o azul do céu, caixa de brincos
solta no caminho, sonho muito acima

Túnica de fada, brilho de madrinha
jóia do milagre que pronto se anuncia
navio concentrado em vocação de cheia
vento súbito que assombra a peregrina

Vinhas para mim, espanto e confraria
palavra ainda rude a procurar perfumes
provocas ruído com teus passos úmidos

Eras a lua, meu presente imerecido
contra o vazio nas terras em conflito
misto de oração e gozo em queda livre

26 de abril de 2013

O MAR SOB O MEU COMANDO



Nei Duclós

Minha vida não foi lá grande coisa. Por isso é natural a atual falta de importância. Vale apenas o sonho, o mar sob o meu comando.

E o que o sr. ganhou com tudo isso? Experiência, sabedoria? perguntaram para o velho.  Ganhei o direito de ser importunado por pesquisadores, disse ele.

Do gelo fizeste um ninho e quis que eu me deitasse. Voei, passarinha.

Podei a flor ela voltou no mesmo lugar. Jardim é quando ela brota, não quando eu corto.

Prometo ser diferente. Vou cortar o cabelo, arranjar um emprego. Depois te convidar para um cinema, na sessão das oito. Lá pelos anos 50.

Me perdi depois daquele beijo. Ainda procuro a saída nos bastidores da sessão de teatro onde nos pegamos.

Ficas onde te invento. Mas não és tu, e sim meu sonho. Escapas sendo o que não alcanço.

Nada te ofereço, criatura do desejo. Apenas o olhar comprido dos meus desajeitos

Há um limite que não transgrido. Quando dizes não sorrindo.

Saberemos tremer quando chegar a hora? Ou deixaremos passar, como sempre?

Tua vontade deixou pistas. Sigo de olhos fechados, de tão intensas.

Me perdi entre cobertas. Estavas em algum lugar, na certa. Descobri quando um suspiro teu me deixou alerta.

Melhor falar sem meio termo. Servir a água fervendo. Sem queimar, apenas sendo.

A noite enrolou-nos de abismo. A claridade nos despertou no fundo.

Devo explicações. Pago em poesia.

Foi uma surpresa. Eu tinha esperança, mas não esperava.

Viver é essa perda maravilhosa de tempo.

Fazer criaturas e nuvens com essas pedras incandescentes soltas no espaço e girando como loucas? perguntou o Anjo. Sim, disse o Senhor. Luzes conscientes e imortais embaladas em matérias datadas olhando para um céu claro de outono.

Vamos transcender. Chega de contexto.

O verso é o que dizes no teu lado avesso.

Preciso do amor, providencie a encomenda. Pago quando chegar, deposito em fantasia.

Podei a flor ela voltou no mesmo lugar. Jardim é quando ela brota, não quando eu corto.

 Qual seu último desejo? falou o carrasco. Boa pergunta, disse o condenado.

Tinha excesso de versos, fez uma lipoinspiração.

Teci palavras com teu rosto. Quando sorris, desfiam-se todas.

Quando voltares da balada, te prepara. Não pense que dormirá de cara.