27 de setembro de 2014

UMA ESTRANHA E COMPLICADA GUERRA



Nei Duclós

Foi muita coragem de Tabajara Ruas levar para a tela o romance Os Senhores da Guerra, de José Antonio Severo. Apresentado no último festival de Gramado, o filme ganhou Prêmio Especial do Júri ( além de melhor atriz coadjuvante para Andrea Buzato), se destacando pela originalidade do tema e sua abordagem. Conhecimento vem do estranhamento.dizem os filósofos,  e tudo é estranho nesta obra de inúmeras revelações. A começar pelo próprio assunto. Existem muitas percepções das revoluções de 1923 e 1924. Os fatos geram as lendas, seus protagonistas os mitos, a memória se mantém pela literatura e a História entra por último, tentando colocar ordem na bagunça. Em vão. Para capturar a complexidade do conflito, é preciso resgatar, recompor, encarnar, projetar e transcender o que aconteceu há muito tempo e que insiste em manter-se oculto principalmente agora, nesta era do eterno presente.

A História brasileira está sendo totalmente reescrita nos últimos anos. Tudo se mostra muito complicado, as percepções tradicionais não cabem mais na diversidade das abordagens e é preciso ir atrás do prejuízo. De que se trata a guerra republicana dos anos 1920? É uma herança da revolução federalista de 1893, quando Floriano Peixoto conflagrou o país ao apoiar os presidentes provinciais que tinham celebrado o golpe de Deodoro, colocando assim o governo federal contra as situações estaduais postas para fora dos palácios. Ela é fruto do embate entre o federalismo oligárquico, fundado no latifúndio e na dependência das exportações,  e o centraliismo modernizador, que pretendia tirar o país do atraso com um poder sem contestação.

Ambas as forças já mediam armas desde o Império, que caiu em função desse duelo, com as tendências políticas se deslocando dos seus discursos, pois as duas queriam a mesma coisa, ficar no poder para sempre. A constituição (o poder nos ombros do Legislativo) versus o mando (o poder na mão de ferro de um líder) estava no miolo do drama, mas depois que a guerra começa, seus efeitos devastadores se espalham pela população e as identidades se misturam, virando um desafio à compreensão. Isso está muito bem representado pela briga entre irmãos (Julio e Carlos Bozano, interpretados por Rafael Cardoso e André Arteche), que em cada lado oposto defendiam ideais e acabaram sucumbindo à realidade do sangue vertido generosamente na mesquinharia política.

Os Senhores da guerra é um filme ambicioso que trabalha em três tempos. Primeiro, a  narrativa poética, a cargo do poeta uruguaianense Omar Villela Gomes, que segue a saga na tradição dos grandes poemas campestres como Antonio Chimango e Martin Fierro, por sua vez herdeiros de ancestral tradição da cultura oral e guerreira. Segundo, a explicação didática das batalhas e do que elas representavam, uma especialidade do escritor Severo, como ficou demonstrado em seu épico sobre o General Osório, uma aula de História da longa guerra brasileira no século 19 e que aqui desce a detalhes reveladores, como a estratégia minuciosa dos confrontos no pampa.

A luta era entre legalistas, ditos  chimangos, apelido do seu chefe, o presidente estadual gaúcho, Borges de Medeiros, confundido com uma ave de rapina local pela pena contundente de Amaro Juvenal, codinome do político federalista Ramiro Barcellos,  e os maragatos, os insurgentes herdeiros da liderança da época do império de Gaspar Silveira Martins e que tinha em Assis Brasil, autor da constituição da República, seu representante máximo. E terceiro, os bastidores políticos e amorosos da trama, em sequências onde se cruzam discursos ao redor de mesas e declarações em salas de luxo pontuados pelas danças , os concertos domésticos e as declamações nos acampamentos.

O filme expõe o esforço brutal necessário para contar a história, pois não é fácil fardar centenas de pessoas, providenciar as armas da época, fazer os figurantes marchar em campo aberto e lutar com desenvoltura e crueldade verossímeis. A produção também permite que o filme ocupe prédios históricos sem cair na tentação da reprodução engessada dos eventos do passado, como acontece normalmente em filmes brasileiros do gênero. A cuidada produção de Ligia Walper supera a dificuldade maior que é convencer o espectador que estamos realmente nos anos 1920 (um truque que está na natureza do cinema, uma arte sempre voltada para si mesma e explícita na sua metalinguagem) e não apontando a câmara para pessoas fantasiadas. Há um esmerado trabalho com os atores, assumido em parte por Miguel Ramos,recentemente falecido e homenageado no final do filme, além de ter feito uma maravilhosa ponta de artista saltimbanco.

Há um sussurrar coletivo de cobras criadas, caudilhos que se orgulham de meter medo, jovens comandantes desesperados e aos gritos no auge da batalha e flashs assombrados de mortes e atentados neste filme que mostra a superposição de épocas no desenvolvimento tardio do país continente, expropriado de suas riquezas e marginalizado pela rapina estrangeira. A Primeira Grande Guerra já tinha mostrado mudanças profundas dos instrumentos e estratégias nos conflitos, mas em 1923 e 1924 tínhamos ainda resquícios do século 19, como se as lanças dos farrapos marcassem encontro com o automóvel e o telefone. É uma guerra brasileira, específica em seu perfil de extrema diversidade, tratada aqui com absoluta seriedade e muito talento.

Há um detalhe importante a ser observado: 1923 e 1924 são duas guerras diferentes, apesar da ligação umbilical (houve vingança contra os combatentes de 1923 e isso alimentou o ódio). A primeira foi uma insurreição civil federalista contra as tropas legalistas. O Exército ficou neutro, apesar dos apelos dos chefes maragatos. A segunda foi uma porção do Exército que se insurgiu para vingar a derrota de 1922, quando um golpe militar fracassou na areia de Copacabana. O Exército revoltoso teve entretanto de lançar mão dos combatentes civis de lenço vermelho quando viram ser impossível vencer os borgistas. Outra coisa: em julho de 1924, houve a revolta em São Paulo, com o bombardeamento da cidade e a fuga dos revoltosos para o oeste do Paraná. Em outubro, os quartéis gaúchos levantaram a bandeira vermelha da revolução: os oficiais Prestes, Siqueira Campos, João Alberto e Juarez Tavora rebelaram a soldadesca na fronteira (Santo Ângelo, Itaqui, São Borja, Alegrete, Uruguaiana). Santa Maria e outras cidades fizeram parte dessa guerra, cada uma com suas identidades, seus líderes, suas artimanhas, seus vencidos, seus heróis.

A famosa frase de Brecht, “triste país que precisa de heróis”, dita num contexto de conflagração mundial contra o fascismo e o nazismo, costuma migrar para nossas paragens para reforçar a ideia de que não temos heróis ou não deveríamos ter. Mas basta ler sobre nossas intermináveis guerras para vermos pipocar em todos os fronts os abnegados heróis da Pátria, cada um com suas qualidades e defeitos. É o Tempo que grito em nosso ouvido e só mesmo a literatura e o cinema para nos mostrar esse berro com toda a sua grandeza. Os Senhores da Guerra, filme brasileiro e gaúcho, baseado em competente literatura, faz isso, com muita propriedade.

RETORNO -  Imagem desta edição: a perseguição aos combatentes de 1923 depois do Pacto das Pedras Altas, uma das semente da guerra do ano seguinte.

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