28 de dezembro de 2014

LIBERTY VALANCE: JOHN FORD DENUNCIA A LENDA



Nei Duclós

Orson Welles, celebrado como o mais Cult cineasta do mundo, costumava dizer que o cinema era John Ford, John Ford e John Ford. Revendo O homem que matou o facínora (1962), sou tentado a achar que esta obra prima supera Rastros de Ódio. Pode ser que seja só um entusiasmo de momento. Mas são tantas as implicações dessa história narrada com a precisão do Mestre que devemos encará-la como séria candidata a melhor filme de todos feitos até agora (de todos os tempos não podemos afirmar, já que não somos donos do futuro). O que deve ser destacado entre os inúmeros vetores desse drama, escrito originalmente por Dorothy M. Johnson (autora também de Um Homem chamado Cavalo e A árvore dos enforcados)?

Ter sido uma autora conta para nossa abordagem. A narrativa divide as opções da garçonete analfabeta interpretada por Vera Miles entre o homem autêntico do oeste (John Wayne) e o advogado do Leste que acabou levando toda a fama (James Stewart). Ford cuida de seu tema favorito: a formação de uma nação. Para isso existe o homem da lei que quer se impor às armas e assim se contrapõe à cultura local, mas que no final é apontado como o matador do facínora (Lee Marvin, antológico). Ele põe o chapéu de texano, força no sotaque que não lhe é próprio e faz carreira brilhante na política, tudo às custas daquele que ficou na sombra e que é o verdadeiro herói de Ford.

Não é a lei, a política ou a imprensa que fazem justiça. A lei se deixa dominar pelas armas, a política pelo pragmatismo e a imprensa pela mentira. Há inclusive uma distorção da célebre citação sobre fato e lenda. Costumam dizer que Ford colocou no filme o seguinte: “Quando a lenda é melhor do que o fato, publica-se a lenda”. Não é verdade. A verdadeira frase é esta: “Aqui é o Oeste. Quando a lenda torna-se fato, publicamos a lenda”. É uma diferença brutal. Se nenhuma dessas instituições sagradas da América faz justiça ao homem que ficou oculto, perdeu a mulher, queimou a casa de raiva por tê-la perdido e jamais pôde dizer que fora ele o verdadeiro autor da façanha de ter matado Liberty Valance, quem ou o que então pode colocar tudo nos eixos?

John Ford é do ramo. Quem faz justiça é o cinema. Porque, claro, é de cinema que se trata, não de lei, ordem ou progresso. Ford, portanto, não se coloca a favor de filmar a lenda como se fosse fato. Ele denuncia a lenda que se tornou fato. E cria seu próprio mito, sua obra épica que ensina a fazer cinema em cada detalhe. A cena fatal do duelo filmada na linha normal da narrativa e depois quando é revisitada por outro ângulo, é a lição seminal aprendida pelos cineastas como  Robert Zemeckis em De Volta para o Futuro, em que esse recurso é usado até a exaustão. Aliás, o terceiro episódio dessa saga é puro Liberty Valance, a começar pela performance de Tom Wilson, o vilão perfeito que imita em detalhes o facínora Lee Marvin.

Achei estranho que Steven Spielberg tenha atribuído, em Always,  a James Stewart uma fala que é de John Wayne (“garota, você fica mais bonita quando está brava”). Ou não entendi direito ou foi o que no jornalismo se chama uma barriga. A derrocada pessoal de John Wayne,mordido por ter permitido que a mulher dos seus sonhos tenha caído no colo do adventício (pilgrim, peregrino, forasteiro), coloca esse grande ator entre os melhores do mundo. Costuma-se fazer pouco de Wayne por ter sido reaça e tudo mais. Mas no cinema isso não importa. O que vale é o talento dessa presença poderosa em muitos filmes importantes.

A autora de histórias de faroeste, Dorothy M. Johnson, teve sua narrativa revisitada pelo veterano de guerra James Warner Bellah e o jornalista Willis Goldbeck. John Ford só trabalhava com craques na matéria. Nos seus filmes, a chegada de um trem numa pequena cidade (imitado por Sergio Leone, seu pupilo explícito, em Era Uma Vez no Oeste) ou o encontro de cavaleiros no deserto se transformam em momentos assombrosos de uma história que empolga a cada minuto. Pena que isso tudo foi abandonado. Hoje temos a forçada fake dos falsos épicos ou a performance cool das historietas familiares. Nada daquele cinema que ficou para sempre como modelo mais perfeito da Sétima Arte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário