27 de julho de 2015

FLOR DE FOGO



Nei Duclós

Acontecemos, assim estava escrito
Só existir já é o evento
as obras chegam com o destino
que é a vontade mais o carisma

Persistimos, como grãos no deserto
que medram no sopro da areia
grudamos nas pedras, meras palavras
e brotamos espinhos na lua cheia

Em vão digo adeus, há sempre encontro
o tempo é rodízio e redemoinho
hoje me negas, amanhã me entregas
puxando água do catavento

Somos a varanda sobre o horizonte
colocamos as mãos acima do rosto
vemos distante o trem do socorro
juntamos a lenha para outro fogo


21 de julho de 2015

UM SEGUNDO



Nei Duclós 
Foi um longo tempo
E agora, no descenso
me recolho aos momentos

Ser pequeno, apesar do tamanho
ficar desatento
prestar atenção no que não devo
passar adiante, assumir ausências
marcar encontro consigo mesmo
e faltar ao compromisso
desconsiderar o ofício
sumir na terra indiferente

É  uma longa vida
que dura um segundo
(minuto de silêncio)


RETORNO- Imagem desta edição: foto de Nei Duclós.

19 de julho de 2015

FOTOGRAFO NUVENS


Nei Duclós


Fotografo nuvens
Elas não dizem nada, nem escutam
Não fazem amor nem julgam
Não sabem línguas, não disputam
não prestam concursos
Não tiveram infância ou futuro
Por milagre flutuam
pontuam tardes de domingo
Inspiram quem olha para cima

Fotografo nuvens
Elas fazem pose. São exibidas
 Mudam de forma, cobrem a Lua
passam o pano no sol de vidro
São como balões turísticos
que carregam o olhar para longe
Pousam em vulcões extintos
transformam-se em neblina
Milagres do céu que se aproxima


18 de julho de 2015

SIMONE E MARILYN: DUAS PERSONAS DE GÊNIO



Nei Duclós

Dois documentários dirigidos por Liz Garbus traçam o perfil de duas artistas de gênio: What Happened, Miss Simone? (2015),  e Love, Marilyn (2012). Ambas com codinome: Nina Simone (o segundo nome tirado da atriz Sinome Signoret) é a menina sonhadora que queria ser a primeira pianista clássica negra dos EUA e virou superstar do blues e do soul com músicas decisivas dos direitos civis nos anos 1960. Marilyn Monroe (nascida Norma Jean e que escolheu seu novo nome em comum acordo com um produtor de Hollywood) é a órfã que deu duro para se tornar uma atriz e explodiu não apenas como estrela maior mas como símbolo de um tempo de mudanças profundas. 

Elas aparecem inteiras a partir de seus diários íntimos, em que dividem confissões, poemas, relatos, denunciando em seus redutos indevassáveis o jogo bruto a que foram submetidas pela indústria do espetáculo e pelo machismo hegemônico, sem falsas inocências mas inteiras como pessoas de gênio em luta por uma lugar à altura do próprio talento. E de como foram entregues à sanha devoradora das massas, o público que procuraram conquistar, e que as envolveram em espirais de fuga e loucura.  Ambas enfrentaram poderes do dinheiro e impuseram suas vontades, mas pagaram caro por isso.

Nina Simone viu que os líderes da luta pela libertação dos negros americanos tinham sido assassinados. Viu como suas músicas insurgentes tornaram-se difíceis de ser digeridas pelos rankings comerciais e pelos organizadores de shows. Sofreu horrores na mão do seu marido e empresário, um ex-sargentão a polícia que batia nela. Exilou-se na Africa, obedecendo o racismo que queria a pele escura fora da América e lá ficou por sete anos gastando sua fortuna. Acabou pobre em Paris onde morava numapocilga. Foi resgatada já avançada nos anos por amigos que impuseram uma rotina de antidepressivos e de shows. Mas a sorte estava lançada e ela jamais recuperou seu lugar de destaque.



De Marilyn todos sabem, ou acham que sabem O bom deste documentário sobre ela é que não tem os chatos dos Kennedys priápicos e poderosos e as falas de Marilyn (e de seus biógrafos) são interpretadas por grandes atores e atrizes como Adrien Brody, Ellen Burstyn, Glenn Close, Viola Davis. É sutil, é delicado, é respeitoso. Coloca Marilyn no seu ligar de gênio do cinema, que criou uma persona imortal a partir de seus exercícios, estudos e leituras. Explica como ela formatou seu andar inesquecível, que matou de inveja atrizes como Lauren Bacall e seduziu toda a população masculina do planeta.

Conta como Marilyn tentou ascender ao grand monde dos intelectuais via casamento com o cretino do Arthur Miller, e dos interpretes de primeira linha, como o bandido do Lawrence Olivier, que tentou humilhá-la depois que notou ter sido devorado em cena pelo gênio loiro. Seu esforço no Actor´s Studio, onde foi esnobada, mas não pelo casal dirigente da grande escola de atores, os Strasberg, que a adotou. Ninguém suporta o carisma de uma personalidade que se impõe pelo talento que transborda, pela coragem que falta à maioria das pessoas, ao destino manifesto de carreiras brilhantes, à predestinação de ocupar um lugar permanente no pódio dos artistas mais representativos de sua época.



Liz Garbus, jovem, bela e brilhante diretora de cinema, arrasa com essas duas obras  absolutamente obrigatórias. Vi no Netflix.


15 de julho de 2015

O FILME DENTRO DO FILME



Nei Duclós

O roteiro sobre um roteiro de filme é o próprio filme em Get Shorty (O Nome do Jogo , 1995), de Barry Sonnenfeld,com John Travolta, Gene Hackman, Rene Russo e Danny DeVito. O gangster de Miami quer investir em cinema e sugere a ideia do roteiro baseado em sua experiência de ir cobrar a conta devida a um agiota em Los Angeles. As duas narrativas se confundem e tudo acaba numa cena de estúdio.

Travolta está imbatível. Ele ensina que um personagem é criado a partir do seu andar. Seu gangster é um apaixonado por filme noir. Seu favorito é A Marca da maldade, de e com Orson Welles, aquele filme em que “Charlton Heston faz papel de mexicano”, como costuma dizer às garotas. Ele sabe de cor os diálogos e os repete na sua vida “real”. Só que não há vida real, é tudo cinema e filme sobre cinema.  

É o que acontece em outra obra. O cenário do jogo é um estúdio de cinema que mostra seus truques em The Sting (Golpe de Mestre, 1973), de George Roy Hill, com Paul Newman, Robert Redford e Robert Shaw. Os jogadores são, no filme, atores, que fingem fazer apostas. As vítimas usam tinta vermelha para sugerir sangue e enganar o mafioso. As balas são explicitamente de festim na história que está sendo narrada. É como no cinema: montes de gente (a plateia, representada pelos falsos jogadores) sabem que é um golpe, um truque, só a vítima que finge que não sabe.

A maquiagem e as roupas servem para criar personagens falsos dentro da paródia toda. No desfecho, os atores, principais e coadjuvantes, se safam, depois de dar um golpe de meio milhão de dólares no meliante. O chefe do FBI é fake, como todos os outros. A garçonete apaixonada é bandida. O speaker de jocquey é contratado pelos golpistas. Tudo é escancaradamente falso. É um filme que diz: é só cinema, vejam. E é ótimo.

Um filme não é feito para as pessoas acreditarem na sua verdade, mesmo os baseados na vida real. Em Fargo, os irmãos Cohen colocaram esse jargão no início e depois confessaram que “baseado em fatos reais” é uma ficção como qualquer outra. Um filme é para mostrar que tudo o que está na tela é só cinema. É o supremo narcisismo dessa arte de individualismos. O cinema é o protagonista. O resto, inclusive nós, é coadjuvante.

Todo filme é sobre cinema. Cada vez me convenço mais disso.