10 de novembro de 2015

A LINGUAGEM E SEUS SIGNIFICADOS



 
Filósofo por vocação e formação, Miguel Lobato Duclós (1978-2015) levava tão a sério seu trabalho que brincava com a imagem tradicional dos seus pares. Providenciou um cachimbo para curtir com a percepção que se tem dos pensadores. A alegria é um dos seus atributos, cultivado à sua maneira, por meio do conhecimento. Ele permeava a leveza com a profundidade a qual se entregava diariamente.

No texto a seguir, de 10 de fevereiro de 2000, publicado no seu megasite Consciencia.org, ele aborda um dos assuntos favoritos nas nossas conversas, a linguagem. Sou um amador nessa área e com Miguel eu aprendia as implicações de um assunto fundamental da cultura contemporânea. Mas vamos deixar o filósofo falar, enquanto temos em nossa frente mais uma foto de sua amada presença.  Mantive o original como foi escrito, inclusive com a palavra recorrente idéia acentuado. Às vezes, é preciso ler mais de uma vez para captar toda a complexidade desta trama teórica, mas vale a pena.

“AS TEORIAS DA SIGNIFICAÇÃO SEGUNDO ALSTING
E A CRÍTICA DE HACKING”

MIGUEL DUCLÓS

Trabalho feito originalmente para a cadeira de Filosofia da Linguagem, professor Armando Manoel de Mora.

    “A semântica é a parte da linguística que trata da relação entre os signos e o real, e do estudo histórico do sentido das palavras. Os conceitos centrais da semântica são o significado, a referência  e a verdade. Os linguistas estruturalistas, a partir de Saussurre – que demonstrou que a língua deveria ser descrita em sua autonomia -  estabeleceram uma distinção rigorosa entre forma e conteúdo. O termo semântica foi criado por M. Bréal, aparecendo no seu artigo  “As leis intelectuais da linguagem, fragmento da semântica”, já em 1883. Portanto, a aparição de uma disciplina que estuda as teorias do significado é tardia dentro da história da filosofia. Isto gera anacronismos, como aponta Hacking, que levam a empregar a expressão “teoria do significado” tal como a tradição contemporânea define, em autores mais antigos, como Locke, do século XVII. Isto ocorre sobretudo porque a linguagem – principal instrumento de um filósofo - sempre foi uma questão de crucial importância para a filosofia.
      
No livro X de A República de Platão, está escrito que “sempre que um determinado número de indivíduos tem um nome comum, supomos que tenham também uma idéia ou forma correspondente”. A busca por uma definição universal é uma parte importante da investigação socrática. Sócrates, por meio de indagações constantes e analogias, obrigava seus interlocutores a admitirem a falha de suas definições de conceitos (como por exemplo a virtude ou a sabedoria) e a partir disto, a investigação partia rumo à busca do significado do conceito em si, de forma a abranger todos seus exemplos. Os velhos gregos costumavam se utilizar das palavras sem saberem ao certo a que elas se referiam, como mostram as diferentes acepções que os convivas de O Banquete tinham do deus Eros e da deusa Afrodite.
      
A linguagem, muitas vezes, é considerada imprecisa ou por demais limitada para descrever ou representar a força da realidade. Esta consciência da limitação acontece de forma aguda em autores místicos, como Plotino ou Bergson. Tendo em vista esta deficiência é que, a partir do final do século XIX, uma corrente de filósofos passou a se destacar, a dos filósofos analíticos. Eles dizem que a lógica (que etimologicamente significa a ciência da linguagem) e a teoria do significado são a parte mais primordial da filosofia, cuja tarefa básica é a análise lógica de sentenças e inferências, através da qual se obtém a solução de problemas filosóficos.
     
 Frege, a partir da linguagem matemática, desenvolveu reflexões sobre a linguagem e o significado, abrindo caminho para a filosofia da linguagem de Russel, Carnap e Wittgenstein. William P. Alston, influenciado por estes autores, classifica as teorias do significado em três classes distintas: ideacional, referencial e comportamental. Alston utiliza estes termos para interpretar pensamentos antigos. Locke é colocado, então, como o pai da teoria de significado ideacional, sendo que ele mesmo nunca usou definição semelhante para sua teoria.
 Na teoria referencial, adotada por B. Russel, o significado é a referência, ou seja, um nome como Fido é o cão que a palavra denomina. A palavra pode se referir a um objeto concreto, a uma coisa, a uma qualidade, a uma relação etc. As palavras são símbolos representativos de algo diverso delas próprias.
      
O próprio Alston se apressa em apresentar esta teoria como rudimentar. Um mesmo objeto pode ter diversos significados. Brasília e a capital do Brasil são o mesmo referente, mas possuem significados distintos. Outro ponto é que, se o significado é o referente, se ele desaparecesse, desapareceria também o significado? Por exemplo, pelo fato de Cartago ter sido destruída por Roma, a palavra Cartago deixou de significar algo? E palavras como “e”, “se”, “enquanto”, se referem a alguma coisa?  Os referencialistas respondem esta questão dividindo as palavras em categoremáticas (que significam algo por si próprias) e sentecategoremáticas ( que precisam de outras para significarem). Alston diz que  talvez a escolha da palavra referir seja uma maneira inadequada de dizer que toda unidade linguística significativa implica em alguma coisa. Outros termos, como denotar, seriam mais acertados.
      
A teoria referencial tem a concepção de que as palavras servem para designar coisas, mas nem todas as palavras se referem a coisas, e nem todas as coisas podem ser postas em palavras.
      
A teoria ideacional e comportamental tem a concepção de que as palavras tem a significação apenas em decorrência do que fazem os humanos quando usam a linguagem. A teoria ideacional acredita que o limite da percepção que posso ter de um objeto vai ser a sensação que este objeto causará em mim no momento em que o percebo. Através dos dados empíricos, eu sou capaz de formar idéias simples (como a de calor), que gerarão idéías complexas (como a de um corpo quente). Estes enunciados da teoria ideacional são dados por Locke e chamados de tal maneira por Alston.
      
As palavras, para Locke, são marcas sensíveis de idéias, e as idéias são o significado. A percepção pura é passiva, e a mente também é passiva na sua formação de idéias, pois nós não interferimos na produção de efeitos em nós. Estes efeitos causam as idéias simples. A idéia em Locke é definida como tudo o que o espírito percebe em si mesmo, e que é objeto imediato de percepção e pensamento.
      
O entendimento é meramente passivo, e o conhecimento não passaria de idéias complexas de acordo entre si, da percepção da conexão, do acordo e do desacordo entre as idéias. A teoria de Locke parece caminhar para uma entificação da idéia, ao passo que a mente humana seria passiva em relação à mecânica deste processo de perceber, formar idéias e representar, isto é, trazer à tona algo que não está presente.
      
Mas o transmissor de uma mensagem consegue imprimir na alma do receptor a mesma idéia que ele tem de um objeto? Seria necessário, que a cada expressão minha, esteja presente a idéia que acompanha esta expressão. Uma representação é uma excitação em meu cérebro através da memória de certo aspecto da realidade, que transponho para um discurso mental, exteriorizado em forma de impulso sonoro pela linguagem e recodificada por quem ouve. O papel do transmissor é excitar no receptor a mesma idéia.
     
 Hacking observa que os filósofos não dão definição clara do que seja esta identidade de idéias. Locke fala algo sobre isso, mas não em conexão  com a linguagem. Porém, parece ser claro que o mesmo objeto  produz idéias diferentes nas diversas mentes que o inteligem. Provavelmente, você compõe a mesma figura que eu ao olhar uma violeta, mas a palavra bucéfalo é significada de modo diferente por um pintor, um cavaleiro e um zoólogo, por exemplo.
      
A idéia independe da linguagem (pois a linguagem surgiu para transmitir idéias), mas um a palavra tem um significado imposto. A maior parte do vocabulário de um indivíduo lhe foi transmitida. Novas palavras surgem a toda instante, mas não vem do nada. Para elas significarem uma idéia é necessário que haja um correlato empírico objetivo na vivência do transmissor e do receptor. Pessoas de um mesmo grupo significam palavras diferentemente, pois ao ouvir uma palavra, puxo de meu inventário de vivências e do meu dicionário interno tudo que está ligado a esta palavra, ou a sensação mais forte que tive com referência a esta palavra.  Minhas vivências são, em grande parte, diferentes das do transmissor. O caráter receptivo da linguagem é aceitar uma palavra no seu  uso comum à sociedade,  e o caráter ativo é transmitir exatamente a idéia que acompanha a expressão ou palavra.  Para que haja o mínimo de entendimento, é necessário um certo conjunto de experiências correspondentes e uma identificação de sentimentos de todas as partes que se comunicam.
      
A palavra significado, para Quine, está saturada  a tal ponto de estar corrompida. Ele sugere o emprego da palavra sinonímia ao invés de significado. Ao perguntarmos o que é significado, supomos que ele seja alguma coisa. Porém, pode não ser possível coisificar o significado. Para Wittgenstein, o significado não é alguma coisa de fato, mas apenas a utilização da linguagem pelas pessoas, o uso. Wittgenstein zombava dos filósofos que pretendiam uma relação real entre as palavras e as coisas.
      
Para Quine, uma palavra pode ter diferentes significados, dependendo do contexto conceitual a que pertence. Para a teoria comportamental, a significação de uma forma linguística é a situação que o locutor a profere e a resposta que causa do ouvinte. A palavra é a representação de x em virtude de possuir a potencialidade de originar respostas semelhantes àqueles que x dá origem. Frege diz existir o sentido porque o uso comum do pensamento e das proposições é transmitido de geração em geração.
      
Para que haja a comunicação através da linguagem falada, não basta supor que a linguagem é inata. É necessário que hajam certos pressupostos, como a admissão da sociedade que um certo som deve ser associado com tal objeto. É preciso que haja um consenso na representação da relação de sinais sonoros com o mundo físico, e uma correspondência na estrutura mental das partes envolvidas na comunicação. São regras como essas, aprendidas quase que por intuição que fazem o mundo físico – distinto dos sujeitos – ser percebido  como signos por seres que tem coisas em comum. Para Alston, as teorias pecam pela sua supersimplificação, e para Hacking, Alston peca pelo anacronismo, pois apesar se considerar execelente sua classificação, não se pode dizer que Locke tem uma teoria da significação.

Miguel Lobato Duclós

http://www.consciencia.org/alsthacki.shtml

                                                           Bibliografia

Alston, Willian P.
Filosofia da Linguagem. Tradução álvaro Cabral. Zahar editores, Rio de Janeiro.

Hacking, Ian. Why does language a matter to philosophy. Capítulo V, nobodys teory of meaning.

Lalande, André.  Vocabulário técnico e crítico de filosofia. Martins Fontes, São Paulo. Diversos tradutores.

Sausurre, Ferdinand. Curso de Lingüísitica General.  Tradución Amado Aloísio. Editorial Cosada, Buenos Aires, 1945.
 

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