14 de novembro de 2015

ALEGORIA E PARÁBOLA NA PRODUÇÃO CULTURAL




Inconformado com o pensamento raso que enquadra autores e ideias em gavetas ideológicas, Miguel Lobato Duclós (1978-2015) procura sempre novas luzes com apoio de sua formação filosófica. Isso dá ampla margem de manobra no seu pensamento, que aborda sempre fatos relevantes da cultura sem cair na superficialidade e na mesmice. Cada texto seu é uma viagem estimulante na busca de soluções para o entendimento. Essa sempre foi sua missão, que ele encarna com maestria, nos dando vários exemplos de como não desprezar nenhum assunto, desde que possamos extrair deles as joias preciosas da consciência sempre atenta a alimentada pelo esforço, o talento e a ética.



No texto a seguir, postado dia 8 de dezembro de 2008 no seu blog, um banho de análise sobre George Orwell. Uma leitura que cruza contexto e símbolos, História e representação. Um detalhe importante são os comentários, que reproduzo no pé deste post, mostrando como Miguel influencia a mocidade estudiosa do Brasil, sendo ele mesmo um dos seus exemplares mais destacados.



“A REVOLUÇÃO DOS BICHOS

DE GEORGE ORWELL

E SEU CONTEXTO HISTÓRICO”



MIGUEL DUCLÓS


“O livro Revolução dos Bichos (Animal Farm) de George Orwell foi publicado em 1945, ou seja, no ano em que os Estados Unidos da América bombardearam as cidades japonesas de Hiroshima e Nagazaki, pondo fim oficialmente ao conflito armado que ficou conhecido como Segunda Guerra Mundial. Isso nos diz muito sobre o contexto pessimista em que se passa a história. Muitos escritores e pensadores libertários e de vanguarda puseram-se a pensar os motivos e implicações da capacidade humana de destruição em massa. A tirania e crueldade eram notícias recentes e constituem, de certa forma, ainda hoje, uma ferida aberta e uma ameaça no imaginário da civilização.

O filósofo Theodor Adorno, por exemplo, lançou em 1949 a famosa frase “escrever poesia depois de Auschwitz é um ato de barbárie” , no desenrolar das reflexões da Teoria Crítica sobre a culminância da dialética da razão instrumental, que, para progredir e se objetivar no mundo, precisa auto-mutilar o homem, chegando a ponto de criar maquinarias e bombas suficientes para extinguir a vida humana na terra.

A URSS, uma das grandes potências vencedoras da guerra, foi a principal responsável por varrer a ameaça nazista, porém, se colocou numa posição antagônica em relação à outra potência, a dos EUA, dando início ao período conhecido como Guerra Fria, que é geralmente delineado até 1989, com a queda do Muro de Berlim. Não é de espantar, portanto, que o líder soviético Stálin tenha sido pintado posteriormente, com base, é claro em várias evidências históricas, como um tirano tão sanguinário e totalitário quanto o que ajudou a derrubar, ao custo do sangue de cerca de vinte milhões de russos combatentes no conflito.

Stálin e o stalinismo são os grandes protagonistas da novela de Orwell. Esta é uma alegoria do início e dos desdobramentos da Revolução Russa de 1917, com a tomada de poder por parte do Partido Bolchevique. Havia, na derrota do czarismo por parte dos revolucionários, uma promessa ideológica libertária e a esperança de mudança. Com os sucessivos acontecimentos que foram extirpando as oposições, na fixação burocrática do Partido no poder, tais esperanças foram sendo esquecidas, dando lugar a um clima político de rigor e intolerância, onde a vigilância (muito bem retratada pelo autor em sua obra 1984) e a punição exerciam força tão compulsiva que criava um clima de desconfiança ferrenho, até mesmo por parte de parentes e amigos.

Marca emblemática deste processo são o assassinato, a mando de Stálin, do opositor Trotsky, que junto com Lênin, foi um dos líderes da revolução, mas, por ter uma visão diferente acabou exilado e depois, ameaça viva ao sistema, morto. Posteriormente, ocorreram as séries de execuções dos opositores conhecidas como o “Grande expurgo”, cujo número de vítimas, não obstante a posterior abertura de arquivos por parte da KGB, continua controverso.

Orwell, autor britânico nascido na Índia, então sob jugo do Império, havia participado ativamente da Guerra Civil Espanhola, precedente importante da Grande Guerra, onde anarquistas se embateram os fascistas franquistas. Sua história no front de Batalha é contada no autobiográfico “Lutando na Espanha”, onde mostra bem o clima de igualdade fraternal que tomou conta, por um curto período, é certo, das cidades controladas pelos revolucionários. Talvez não seja exagero dizer que esta utopia era uma das propagadeadas pelos revolucionários russos. Porém, como dissemos, quando as coisas descambaram para a realidade, com a perseguição inclusive de antigos “companheiros opositores”, a desilusão tomou conta, a ponto de o “fim das utopias” ser apontado como um dos marcos definidores da chamada “pós-modernidade”.

O livro critica, então o Stalinismo, chamado de “animalismo”, e existe uma interessante correspondência entre os personagens da ficção e os personagens reais. Tal recurso literário deu margem a muitos debates, sendo também uma inteligente maneira de não acusar abertamente e evitar a censura num momento político delicado como o existente. Snowball (Bola-de-Neve), no romance, pode ser Trotsky, e Stálin é um porco que leva o nome de outra grande figura política, Napoleão, talvez não por acaso. A figura de Lênin pode estar representada pelo personagem Snowball ou então na de Old Major, embora este traga características que podem bem lembrar a do filósoso alemão Marx, grande inspirador das correntes teóricas que fundaram o comunismo prático. O romance mostra como Napoleão vai gradualmente manobrando os assentamentos iniciais da revolução da fazenda para ir conquistando o poder de forma total, até chegar na famosa inversão do último mandamento da vitoriosa transição política dos animais: “Todos os animais são iguais.”, que passa, ao final da narrativa, a constar com um adendo “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. Todos os mandamentos originais são adulterados com o triunfo dos porcos, que vão subjugando os outros animais ao controlar e posteriormente monopolizar o poder político (quatro patas, bom, duas patas, ruim).

A posse de poder por parte do proletariado deveria resultar na prometida igualdade, porém, a direção do partido e o surgimento da figura de um líder carismático, apoiado por um severo sistema de propaganda (no livro, o personagem Squealer) que passa uma imagem de coerência e legítima preocupação, enquanto na prática exerce o velho domínio e extirpa opositores, gera inevitavelmente a desigualdade, e a corrupção das idéias socialistas. A profissionalização da política gera uma desvinculação da base ativista, sempre ocupada com seus afazeres comuns, sua vida cotidiana, e, conseqüentemente, de uma classe de privilegiados. Na prática, apesar do discurso, a sociedade de classes, portanto, se mantém, e o proletariado não toma posse efetiva dos meios de produção, antes, continua sendo usado como peça para a ascensão de poucos, e ainda tolhido de liberdade social, individual e intelectual, com poucas esperanças de superar essa condição e progredir.

A crítica de Orwell é radical e não se estende somente ao período histórico mencionado, mas é antes um retrato melancólico da inseparável estupidez da humanidade, em todas as épocas. O perigo, no entanto, é bastante claro: usar o talento alegórico desta narrativa pode manter o estado de coisas para sempre, a conservação, ao invés das tentativas de mudança. E o controle, ao invés do desprendimento, pode levar à estagnação das aspirações políticas, ou pior, ao niilismo, internalizando a aceitação e facilitando a criação humana como gado de abate. Mesmo com o fim da URSS, o livro se confirma atual, mesmo com a transfiguração notável dos valores e dos indivíduos contemporâneos, justamente por tratar de uma temática de difícil superação. Nesse sentido, a forma de alegoria mostra-se uma escolha acertada, já que tira os signos do contexto histórico meramente jornalístico, e o eleva a uma dimensão mítica, atemporal. Esta pode servir como chave de interpretação para várias situações, embora seja uma leitura particular de um contexto político-cultural de peso, que não deixa margem para dubiedade de posições, mas antes inspira, ontem e hoje, um debate apaixonado, inspirado, que decide efetivamente modos de vida, que dizem respeito a todos.

Para explicar este ponto de vista, basta lembrar que os 7 mandamentos da Granja dos Bichos, por exemplo, podem ser equiparados a motes de outras revoluções burguesas, como a Revolução Francesa e a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Nesse quesito, é difícil um país superar os outros, já que, carne fácil na mandíbula sedenta dos poderosos, este discurso é apoderado e usado como motivo de imperialismo e intervenção. É o caso, por exemplo, da sanguinolenta invasão do Iraque em favor da “democracia”, e contrária à “tirania” de Hussein, mas que diariamente mostra que, pelo menos a curto e médio prazo, os motivos justificadores não se verificam na ação prática, constituindo mero joguete de manipulação das massas para o interesse econômico e militar de poucos grupos.

De forma caseira, temos no Brasil a ascensão ao poder de uma falsa esquerda, que contrariando seu histórico de lutas, mostra-se conservadora ao se enraizar no sistema, fechando alianças com antigos inimigos e mantendo uma política econômica subjugada a interesses especulativos globais, distante da soberania nacional e muito mais do socialismo. O povo, como, esperado, acaba caindo na desilusão política e no desligamento de suas lutas, através da confirmação da crença de que “todos os políticos são iguais”, mas, no caso, com o nivelamento se realizando no nível humano mais baixo que se possa imaginar.

Da mesma maneira, a distopia negativa de 1984, não se concretizou efetivamente travestida de uma falsa aura de permissão e liberdade?”

Miguel Lobato Duclós, siga no link

http://blog.cybershark.net/miguel/2008/12/08/a-revolucao-dos-bichos-de-george-orwell-e-seu-contexto-historico/

ALGUNS COMENTÁRIOS

Muito bom o texto que você redigiu, mas a parte que mais me prendeu foi a citação do Brasil com a ascensão de uma falsa esquerda. Não sei se foi do seu intuito comparar a obra de Orwell com o Brasil atual, mas de certa forma é possível encontrar (muitos) pontos em comum. Parabéns pelo texto. (Lucas)

Resposta: Foi esse mesmo um dos intuitos, para mostrar que o livro pode ser apropriado por conservadores anti-comunistas, ao passo que, sendo libertário, pode ser aplicado também à outras realidades políticas, inclusive as “liberais”.

Muito bom o texto, me perdoe, mas usei ele de base pra escrever a crítica ao livro que preciso pra faculdade…rs. Acho que você não vai se importar! beijinhos (Natalia Clivatti).

Muito bom, usarei como base na minha prova sobre o livro! (Nãne)


Resposta: Nane, legal… isso aí é uma provinha que fiz, bjs ;*

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