29 de fevereiro de 2016

RESQUÍCIOS



Nei Duclós  

Ruga na parede, borrão de espátula
cinzel em massa feita de resquícios
todo momento é o lixo das certezas
corte transversal na âncora da fala

Briga na tocaia, deriva de barco
Não resguardo teu entendimento
não sei compor a escultura perfeita
enigma que teces com fio farpado

O mundo é apenas a sonoridade
que o tempo bate em corpo de seda
palavra que descobre novas terras
casulo em generosa brisa de véspera

Falta sentido no dorso da encomenda
que entregam na rua de outro bairro
em vez de partir, adoto o recomeço
retenho o ciclo de uma espiral completa




26 de fevereiro de 2016

ESPEREI A HORA



Nei Duclós

Esperei a hora do texto claro
obra enxuta, ovo de mármore
inútil por apenas bastar-se
nicho de pássaros migratórios

O coração tinha fechado a porta
mas o corpo é imune ao desaforo
mergulhei num quarteto de cordas
para escutar além da retórica

Somos virtuoses de violino raro
notas da promessa de aurora
passo ainda firme, flor em forma

Fico na estrada cobrindo a fuga
sobrevoo os rebanhos esparsos
sou o pastor de um tempo futuro


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Manet.

24 de fevereiro de 2016

SUITS, TEMPORADA 4: UMA DEVASTAÇÃO

Assisti no Netflix toda a quarta temporada da série Suits, criada por Aaron Korsh. com os excelentes Gabriel Macht, Patrick J. Adams, Meghan Markle e Sarah Rafferty. Lá fui eu alegremente curtir a continuidade das peripécias da empresa de advocacia de alto coturno nos últimos andares dos edifícios mais poderosos de Manhattan, eixo do sistema econômico do primeiro mundo, uma aula de pragmatismo por meio do diálogo, onde a lei se submete à arte de mistificação nas negociações entre empresários, investidores, banqueiros, advogados, juízes, conselheiros e fiscais do governo.

Sempre achei divertido o repasse célere de pastas azuis no cenário iluminado, contendo as soluções mais articuladas, bizarras e surpreendentes que acabam virando mil vezes por dia o jogo que era de cartas marcadas. Sempre gostei dos amores entre personagens que sugerem intensa especialização naquilo que fazem e oscilam entre o o sexo casual e o relacionamento duradouro. É um ambiente de extrema competição, onde não se poupa ninguém e as carnes e estômagos estão expostos em ações que são o puro uso maroto da palavra, que prepara armadilhas e oferece rumos inéditos para transações que envolvem milhões e até bilhões de dólares. Os americanos sabem como convencer que estão dominando o assunto, mas como todas, a série é um jogo ilusionista que oferece o carisma do pôquer mas curte mesmo é um confronto bruto de forças variadas.

Pois, como dizia, tudo isso era muito divertido pois entramos no clima sabendo que estamos sendo enganados, mas admiramos essa exposição de como o mundo dos negócios deve funcionar. Certamente é algo ainda mais bruto na realidade, mas a indústria audiovisual precisa manter as aparências e oferecer qualidade sem tropeçar no catequismo ou no cinismo puro e simples. Só que a temporada 4 é uma devastação de toda a história. O que havia de competição virou ódio intenso, vingança e as pessoas se destroem com seus segredos e cobranças, mostrando o lado mais sinistro de vidas reveladas vazias.

O que era charme vira pesadelo e seguimos os passos do novo vilão Louis Litt, que descobre o segredo do escritório e chantageia a tudo e a todos, roubando clientes do carismático Harvey Specter e torturando sua vítima favorita, Mike Ross, o gênio que fraudou um diploma de Harvard, e gritando com sua ex-chefe, Jessica, que cede às chantagens do amante e o contrata para tê-lo por perto. Vemos como a autoridade decai e o caos emocional e moral toma conta de salas e corredores, como um casal se esbagaça no ciúme e como uma relação em compasso de espera se transforma numa brutal desesperança.

Não se trata de humanizar os personagens, mas de destrui-los. O mundo que manipulavam tão bem acabam com a relação entre eles e só resta a superficialidade, o fim da amizade ou do amor e a luta pela sobrevivência a qualquer preço. Em troca de que? Ninguém quer abrir mão de suas posições e todos rolam pelo abismo agarrados aos seus erros e esperanças devastadas.

Um assombro de espetáculo. A série mais foda da atualidade.


RETORNO - Imagem desta edição: Louis Litt chantageia Harvey Specter. Nota: num post anterior, errei ao colocar Temporada 5. É a temporada 4, como está aqui. Obrigado ao amigo que me alertou do erro.

21 de fevereiro de 2016

PERDI O TEMPO



Nei Duclós

Perdi o tempo, que me ganhou cedo
sobrou espaço para manter-me tenso
o que faço foge no misterioso evento
o que fica passa numa espiral lenta

Não participo quando estou no centro
só sento praça quando a guerra é certa
fui convocado para hastear bandeira
há compromisso de vela em cada vento

Fiquei sem dizer o segredo para o front
precisei recuar junto aos combatentes
sonho voltar mas recusei comando
fico numa torre com a pólvora seca

Servos armados calam baionetas
a paz é a princesa sem nenhum acesso
cruzo o lamaçal com água pelo joelho
despertarei  o acordo só com um poema


15 de fevereiro de 2016

AVIÃO



Nei Duclós

Compete à palavra, arte com atrito
entre fonte e eco, silêncio e grito
dispor do pensamento já colhido
repor no coração o gasto sumo
com mãos de feltro e pele de cortiça

É só a vocação, não o compromisso
essa combinação de virtude e vício
momento de oração, dança lasciva
choque de cordão, carnaval antigo
futuro da flor ainda sem batismo

O tempo todo é isso, espelho bruto
que reflete o rosto cinzelado a vinco
broto na planície, sementeira nua
suja pegação de beijo e compostura
juro que é um avião esse chão espúrio
 



10 de fevereiro de 2016

RESCALDO



Nei Duclós 

Leio o que fiz, mas nunca lembro
o instante que o poema gera
fica a palavra, muro sob a hera
desprovida de sol, flor jogada fora

Por mais amor que a criação costure
o fio do abandono não se recupera
imagem fosca, rescaldo sem o brilho
tristeza surda a cultivar a espera

A não ser que envolvas com abraços
o espanto que me causou a escritura
só assim terei a glória e a fortuna

Nada compõe o verso sem leitura
anel perdido em temporais de areia
que aguarda teu olhar, diamante puro