1 de junho de 2016

COLÔMBIA E ETIÓPIA: A LEI DO CÃO E A JUSTIÇA



Nei Duclós

Uma das minhas cenas favoritas de A Vida de Brian (1979, TerryJones/ Monthy Pyton ) é a reunião clandestina dos guerrilheiros com os judeus oprimidos: Vamos expulsar os romanos. O que nos deu o Império Romano? diz o agitador. A coleta de lixo, diz alguém a plateia. Sim, a coleta de lixo. Mas só isso, o que mais? As estradas e o policiamento noturno, diz outro. Sim, sim, mas nada mais que isso. O Direito Romano, diz finalmente mais um.

Longe de justificar a opressão, mas desmascarando quem tenta jogar fora a água suja do Império junto com o recém-nascido, as conquistas legais, o filme mostra que civilização é uma árdua construção que merece ser entendida para que não se renovem os equívocos. Nenhuma ideologia deve servir à barbárie. Junto com a mudança deve vir o entendimento e também o perdão. Isso me ocorre ao assistir dois filmes excepcionais lnçados em 2014. Um é Manos Sucias, do americano com raízes no Japão e na Polônia Josef Kubota Wladyka, que brilhou no festival alternativo de cinema Sundance e aborda o envolvimento de dois pescadores no tráfico pesado de drogas. E outro é Difret, dirigido por Zeresenay Berhane Mehari e produzido por Angelina Jolie, com a jovem Tizita Hagere (foto) no papel da garota estuprada pelo pretendente cheio de razão, pois estava amparado na tradição.

Depois desse caso abordado no filme, o sequestro da noiva virou crime na Etiópia e dá cadeia de cinco anos para quem pretender agir sem atentar para a nova lei. Mulher assim deixa de fazer parte dos móveis, rebanhos e utensílios dos homens, graças ao trabalho de uma advogada amparada por uma Ong que presta auxílio gratuito para as meninas perseguidas. É de arrepiar a cena em que os lavradores pedem a pena de morte para a menina de 14 anos (uma idade sob suspeita dos policiais por ser ela desenvolvida), que ao se defender do crime sexual atirou no sujeito, que acabou morrendo. O ancião da aldeia decreta uma indenização à família do morto e o exílio da mulher que atirou em legitima defesa, arrancando urros de indignação de quem defendia a pena de morte..

Na Etiópia, o idioma oficial é o amárico, uma língua semítica com cerca de 26 milhões de falantes nativos. Não se deve confundir com o aramaico, falado em partes do Oriente Médio , embora ambas sejam línguas de origem semítica.A palavra em amárico do título do filme, "difret" tem um duplo significado. Em seu uso mais amplo significa coragem e a tradução em Inglês mais próximo aponta para o verbo "ousar". Mas, em amárico, ele também tem um-duplo sentido que significa "o ato de ser estuprada".Nessa confluência de significados, somos transportados para a sinuca de bico deste caso em que o direito romano, com testemunhas, júri, juiz, sentenças, se impõe sobre os hábitos e certezas milenares.

No outro lado do mundo, mas sintonizado no mesmo diapasão do terror social, Manos Sucias foi feito graças a uma bolsa fornecida pela instituição fundada pelo Spike Lee. Aborda a lei do cão na selva colombiana, onde a favela fornece mão de obra barata para os chefões do tráfico. A sequência de perseguição e fuga em motonetas sobre trilhos é de nos arrancar da cadeira. Os moços pescadores são levados ao crime brutal com armas de fogo e com as próprias mãos para poder fazer a entrega de um grande carregamento, que é acoplado ao seu barco com um cabo, para despistar a polícia. A inocência dos protagonistas que se enlameiam na culpa dos assassinatos, sendo eles próprios vítimas dessa situação (um deles perdeu um filho com um tiro na cabeça) contrasta com o clima de um ambiente em que a natureza adquire tons sinistros, contaminada pela maldade humana.

Dois tremendos filmes. O colombiano no Netflix e o etíope no Telecine Cult. Cinema é o que pega.


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