16 de setembro de 2016

CINEMA, O OLHAR QUE ANDA



 Nei Duclós


Cinema é o olhar em movimento. A imagem que se move junto ao som é acompanhada pela percepção do espectador. Em Janela Indiscreta (1954), Hitchcock coloca em cena uma representação da plateia, o olhar de quem está fora da ação. Esta se desenvolve em cenas de cinema mudo através de uma janela debruçada para outras janelas de apartamentos. O paradoxo é que a verdadeira ação é esta em primeiro plano, do olhar que acompanha o assassinato e outros eventos no condomínio. Hitchcock orienta o olhar do espectador para o que é visto e para quem vê.

Em certo momento do filme, quando Grace Kelly enfim se convence de que há algo errado na janela em frente, ela diz: Repita o que você viu e o que isso significa. É a chave do filme. Precisamos contar o que estamos vendo e o seu significado para que os outros compartilhem dessa percepção.

Uma obra prima se presta a inúmeros vetores de leitura. Toda vez que a revejo, beneficiado pelo repeteco obsessivo da TV  a cabo, descubro alguma coisa. Ou presto atenção no que me passou lotado. Pode-se dizer que o filme é um conjunto de situações conjugais. Os recém casados que se encerram por uma semana para cumprir a escrita, o casal de idoso que pega chuva na varanda exposta de verão e perde o cachorrinho para o facínora, a solitária que enfim encontra seu par no compositor do andar de cima, a loira atlética que se livra dos pretendentes para abraçar seu amor que veio do front, o vendedor que cuida da mulher e acaba brigando com ela e a matando,  e finalmente as situações dentro do apartamento dos protagonistas. Além de Grace e Stewart, que ficam colocando suas diferenças insolúveis em meio a uma paixão irresistível, há também a fidelidade da empregada (Telma Ritter) que vive falando bem marido enquanto esfrega freneticamente as costas do patrão. É um erotismo de sugestões e conflitos, uma permissividade confinada à rigidez dos costumes.

Permeando essas narrativas há também o debate sobre privacidade e ética . A guerra, a televisão, a mídia internacional, a imposição das imagens, as revistas de comportamento e fofoca expõem a cidadania permanentemente. O voyeur que descobre o assassinato é também um voyeur profissional pois vive da fotografia de guerra. O sujeito que coloca o olho no mundo, ao ser confinado em casa devido a uma fratura na perna, volta suas lentes para a vizinhança e se pergunta se está certo o que esta fazendo. Sua profissão é imobilizar a ação por meio da fotografia. Só que ele agora está no cinema. Precisa da teleobjetiva para ver de perto o que se move longe de si. Precisa da proximidade para entender a ação sem ter de engessá-la.  

O filme, no original, chama-se Janela dos Fundos (Rear Window). É uma intervenção no íntimo da vida doméstica, no anonimato das grandes cidades. As pessoas são situações de solidão e desespero, vistas de longe. Tem a intimidade devassada por um olhar desocupado. Isso está certo?

Hitchcock não veio ao mundo a passeio. Era celebrado por Godard, que fixou a câmara, ou seja, imobilizou o que estava em movimento. Talvez na intenção de libertar o olhar do público da imobilidade, fazê-lo assumir o papel de protagonista diante do cinema. Se a Sétima Arte fica imóvel, a percepção precisa se deslocar, se movimentar. Hitchcock representou o olhar do espectador no protagonista. Godard procurou desalienar essa visão fixa na ação que se desenvolve na tela, tratando a ação didaticamente, de maneira descritiva diante do aprendizado da plateia. O cinema ensina e a cultura se resolve.
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