2 de março de 2017

POEMAS DE UM VERÃO SOMBRIO



Nei Duclós

Fez sol de rachar semanas sem fim, num calor insuportável. De molho por vários motivos, me dediquei a compor alguns poemas, no clima sombrio de uma época bruta e de sinistra claridade. Palavras de entrega e reação ao ambiente complicado. Puro exercício de linguagem.


MATÉRIA PRIMA

Prefiro a paisagem, que é teu gosto
a gana de ser, que nos transcende
o corpo é detalhe , o que se mostra
é o sonho que gera o próprio rosto

Vai além dos olhos, da postura
é a matéria prima que se presta
à providência, que é divina
por ser do mesmo material de espuma

COM A LITERATURA

Chego aqui com a literatura
Musa e rebento, cama e armadura
Ela te escolhe, rude companhia
A palavra dita criada em oficina

ESCUTA

Quanto menos exijo da minha arte
mais ela se solta
Não é preciso dourar a pluma
que se basta na precisão do voo

Autoria é ave criada em cativeiro
seu movimento é tosco, pé sem rumo
Tropeça por sua conta, e cria laços
Deve deixar livre o compromisso

Sou eu que faço, mas o mistério do destino
é essa criatura que se mostra
consigo mesma, como concha oculta
no mar que guarda em sua escuta

ARGAMASSA

Retribuo o aceno
o abraço virtual, puro desenho
ambiente onde projetamos a utopia
o convívio, varanda ao abrigo do sereno

O beijo também pode ser poesia
Mesmo a distância dispõe do raro acervo
A identidade humana, essa argamassa
em que, operários, repartimos tudo

PRESENÇA DO POEMA

A sóbria presença do poema
Nenhuma sombra a lhe ferir o esquema
Moldura de um aço de teimosa têmpera
que impulsiona navios afogados no peito

Perfil de sonoridade extrema
A que não se escuta mas que no tempo vence

NO EXÍLIO

Sobrevivemos às nossas certezas
que eram o mundo conhecido, hoje extinto
Notamos com pesar o desperdício
o esforço acumulado em sacrifício
Nada restou diante da ruína
que projetou sombra onde havia vida
Como sábios sem uso abandonamos manuscritos
e nos recolhemos em sítios de exilio
Garças sobrevoam a planicie
Elas forjam um poema em papel de seda
Das antigas palavras
recolhemos o dom da profecia

LONGE PERTO

Não gosto ver de perto
o enrosco da tinta
em rugas de pincel
Prefiro o que forma
no olho aberto
Na tela que conjuga
a cor e o vendaval

Se estiver longe
enxergo
a magia que íntima
se costura

CULTIVO NO ESCURO

O clima do pais mudou
já não cabe a poesia
A palavra se recolhe
no silêncio da oficina
Talvez seja sua sina
cultivar em tempo escuro
a luz que fica muda
no olhar que já não brilha

DEMORA

Demoro para responder
Acham que estou morto
Sei o que dizem
mas não me importo

Será isso a morte?


Nei Duclós

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