9 de agosto de 2017

OS INADAPTADOS, DE JOHN HUSTON




Nei Duclós


O título The Mistifits, de John Huston, 1961, foi traduzido corretamente para Os Desajustados, que é um dos significados da palavra,  e é assim que é conhecido esse baita filme, duro, cruel e poético do grande cineasta. Mas o mais apropriado seria no sentido de Os Inadaptados. Falta de adaptação é o que define melhor os personagens, interpretados por uma galeria de magníficos atores – Clark Gable, que morreu logo depois em função do esforço exigido na obra; Marilyn Monroe, que complicou as filmagens com sua briga com o roteirista, seu marido Arthur Miller; Eli Wallach, que berra no desfecho para seu comparsa xingando-o, cena imitada por Sergio Leone em O Bom, o Mau e o Feio; Telma Ritter, a inteligência e o talento da veterana; e Montgomery Clift, complicado e brilhante.


Todos faziam parte do mundo normal. A bela divorciada (Marilyn) saía de um casamento sólido, o cowboy (Clark) ficou velho e com ele sua profissão, a de prear cavalos mustangs, que não serviam mais de montaria, mas de ração para cães; o alcoólatra craque dos rodeios (Clift) que arrisca a vida numa profissão perigosa e obsoleta para escapar de sua dependência materna e da má lembrança da morte do pai; a separada (Thelma), que viu seu casamento acabar mas ainda está ligada ao ex-marido, que vive com outra; e o piloto de guerra (Wallach) que perdeu a embocadura da vida depois de ter bombardeado cidades e matado gente. Ou seja, são inábeis, o tempo passou por cima deles. E não rebeldes ou malditos, como sugere o termo desajustado, que estava na moda nos anos 60, no auge da delinquência juvenil.

Outro detalhe importante é a coincidência entre as cenas de laço aos cavalos em disparada e a captura dos rinocerontes no filme do ano seguinte, Hatari. Ambos são brutais, mas Huston tem a precedência. Gable não tinha mais idade para aquele tipo de cena. John Wayne em Hatari conseguiu se sair bem, mas o ex-galã  Clark sofreu demais com as exigências do matador Huston e com os atrasos de Marilyn. Todos estão excepcionais no filme, que narra o encontro de uma turma da pesada que não tem mais lugar no mundo e acabam se confrontando num desfecho intolerável para os espectadores sensíveis. São cenas impactantes, dignas de uma antologia da Sétima Arte.

A obra tem dois momentos. O intimista, em que Clark e Marilyn se aproximam, Clift e Wallach tentam conquistar a beldade, cada um com suas fraquezas tentando sensibilizar a moça, e a velha senhora que tenta parecer jovial conformada com sua solidão. Todos bebem hectolitros. Num filme inacabado de Orson Welles, em que Huston faz o papel de um cineasta, há o seguinte diálogo: Em que parte do roteiro estamos, Orson. E isso importa, John? Sim, eu preciso saber a que altura da bebedeira eu me encontro.E o outro momento é a sequência que começa no rodeio cheio de gente e termina no deserto na captura dos cavalos. Tudo por alguns trocados e a insistência numa vida que já passou.

The Mistifits é o enterro de uma era do cinema, faroeste inclusive, de atores que saem de cena, veteranos que se aposentam ou morrem, ou jovens que acabam se suicidando ou revelando o lado sombrio das grandes estrelas. Huston não veio à Terra a passeio. Ele é impiedoso e insuportável. Mas seus filmes são encantadores na sua crueza. Ele também não se adaptou, pertence a uma linhagem de cineastas que desapareceu junto com suas grandes obras. Nada se faz como antigamente, quando a civilização tinha atingido seu esplendor. Seu cinema é sobre uma forma contundente de fazer cinema. Vejam, diz Huston e seus pares, este é o cinema. Lembrem disso. 


A cena final de Clark e Marilyn se orientando pela estrela guia no escuro e olhando pra o infinito é inesquecível. Uma família vai nascer desse encontro. Há esperança de adaptaçãoà vida e ao destino. Não propriamente ao mundo, sempre bruto. Mas ao sonho de uma vida pautada pelo respeito, a tolerância e o amor, que são os diferenciais introduzidos no grupo pela bela mulher que saiu de uma relação desfeita para um futuro com esperança.



Faltou dizer: o filme trabalha a ideia de liberdade na América, em que as pessoas que foram jogadas fora querem continuar ganhando a vida sem depender dos esquemas de empresa ou salário. Mas não conseguem sobreviver com o que sabem fazer, que são atividades fora de uso. Decai assim o sonho americano da terra da aventura e junto com ele o cinema, que perde sua identidade clássica e oferece o avesso de uma nacionalidade ferida..
 

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